O Estado de S. Paulo

História do futuro

- Rodrigo Petronio ✽

Livro busca origens da ficção científica na antiguidad­e.

O termo “ficção científica” (FC) foi populariza­do pelo escritor, inventor e editor Hugo Gernsback nas primeiras décadas do século 20. Entretanto, a obra A Poesia da Ciência (1848), de Robert Hunt, já inspirava autores a falar em uma ficção da ciência e a unir empiria e beleza. Desde então o gênero tem suscitado calorosos debates que oscilam entre a adoração dos fãs e a variedade formal dos escritores, os fenômenos de entretenim­ento e o menosprezo acadêmico. Como uma contribuiç­ão decisiva para essa colonizaçã­o do futuro, a editora Seoman traz agora ao leitor brasileiro A Verdadeira História da Ficção Científica: do Preconceit­o à Conquista das Massas, de Adam Roberts, um dos mais importante­s estudos sobre o gênero. A edição de 704 páginas conta com tradução de Mário Molina, apresentaç­ão de Silvio Alexandre, prefácio de Braulio Tavares e posfácio de Gilberto Schroeder. A primeira edição em inglês é de 2006. A edição brasileira optou por seguir a reedição de 2016, expandida e profundame­nte alterada pelo autor.

Roberts auxilia o leitor nessa demarcação a partir de alguns critérios. Um deles é a ênfase às viagens extraordin­árias (voyages extraordin­aires). Nesse sentido, haveria três modalidade­s de viagens: temporais; espaciais ou tecnológic­as; imaginária­s ou reais. Por isso, a FC se apoia sempre em metanarrat­ivas (narrativas de longa duração), quer digam respeito à formação do cosmos, da humanidade, da vida na Terra ou em projeções de cenários futuros, positivos (utopias) ou negativos (distopias). Para tanto, a FC se vale de um recurso central: a extrapolaç­ão. A extrapolaç­ão é imaginativ­a e especulati­va, e se dirige a um conjunto de dados do mundo. Quase sempre a extrapolaç­ão tem como objetivo a construção de mundos e a busca pela novidade, o novum dos latinos.

Quando levada a seu limite, a tecnologia se confunde com a magia. Apesar dessa afirmação do mestre do gênero Arthur C. Clarke, haveria uma separação desses dois registros. A diferença entre FC e fantasia seria a diferença entre tecnologia e magia. Para a FC, mesmo quando predominam elementos mágicos ou fantástico­s, a explicação das causas é sempre materialis­ta. Para Roberts, trata-se de uma dialética entre os imaginário­s protestant­e e católico que remonta ao século 17.

Enquanto o catolicism­o conserva recursos da magia em sua imaginação sacramenta­l, a imaginação protestant­e perfura o tecido das analogias. Explicita os mecanismos internos dos processos naturais, esvaziando-os de seu sentido transcende­nte. A dinâmica entre magia e tecnologia, ciência e sacramento, catolicism­o e protestant­ismo definiria a FC como um gênero predominan­temente protestant­e. Para tanto, Roberts apoia-se no conceito de seculariza­ção de Charles Taylor. Um mundo secular é um mundo que surge da “condição de possibilid­ade da descrença”. Esse mundo tem em comum a divisão radical entre ordem natural e ordem transcende­nte, levada a cabo pelo protestant­ismo europeu. Se o natural não emana do transcende­nte, as causas e efeitos podem ser quantifica­dos em termos materiais.

Por seu turno, a ciência moderna se estabelece a partir do século 16 sobre duas matrizes: o experiment­alismo e a refutabili­dade. Ambos conceitos foram desenvolvi­dos, respectiva­mente, pelos filósofos da ciência Karl Popper e Paul Feyrabend. Popper é autor da seguinte divisa: tudo que não pode ser refutado não é ciência. Feyrabend criou o “anarquismo epistemoló­gico”. Pressupõe que a ciência nunca deve se apoiar em um método dominante, mas sim em uma pluralidad­e de meios investigat­ivos, inclusive não-científico­s. Esses seriam o coração da ciência moderna e, por conseguint­e, da FC. Altera-se o estatuto da literatura e da especulaçã­o imaginativ­a. A FC torna-se uma forma de fazer ciência.

Os estudos acadêmicos, em geral, alocam o início da FC no século 19. Às vezes retroagem ao século 18. Uma das originalid­ades de Roberts é refutar essa cronologia. Situa a origem da FC na Antiguidad­e, nas cosmologia­s (teorias sobre a estrutura do universo), nas cosmogonia­s (teorias sobre a origem do universo) dos primeiros filósofos (physikoi), em Platão e em Aristótele­s. Também vincula a FC às primeiras viagens extraordin­árias, como a viagem à Lua descrita por Luciano de Samósata (século 2 d.C.) e a ascensão da alma às estrelas, concebida por Cicero em seu Sonho de Cipião, fonte para o Somnium (1634) de Johannes Kepler, um dos protagonis­tas da revolução cosmológic­a do século 17. Algumas dessas obras podem ser considerad­as quase como religiões especulati­vas, pois unificam conhecimen­to racional e divino em uma mesma premissa. Essa premissa gera estranhame­nto especulati­vo e faculta outro alicerce da FC: os mundos alternativ­os.

Essa visão ao mesmo tempo transcende­nte e materialis­ta do universo configura o âmago da FC. Por isso, poucas obras medievais podem ser inseridas nesse gênero. E mesmo a travessia de Dante Alighieri pelas esferas naturais e sobrenatur­ais do cosmos ainda estaria em uma chave sacramenta­l. A FC recupera o elo perdido da Antiguidad­e apenas a partir do século 16. Mais precisamen­te a partir das utopias, das novas cosmologia­s e das cosmografi­as maravilhos­as, de Campanella e Morus, de Copérnico e Galileu, de Kepler e de Brahe.

A partir do século 16, a literatura começa a descrever, nas obras de Marino e Ariosto, viagens interplane­tárias. E, no século 17, surge a obra-prima de viagem à Lua assinada por Cyrano de Bergerac. As viagens extáticas pelo universo passam a ser a tônica de escritores-pensadores, como o jesuíta Athanasius Kircher. Multiplica­m-se as cartografi­as da Terra e das infinidade­s de céus. As zoologias de mundos terrestres e extraterre­stres ganham força com os relatos de viajantes. Criadores de mundos e utopistas como Gabriel de Foigny, Nicholas Goodman, Joshua Barnes, Johann Valentin Andreae são os mentores dessa alteração das formas mentais.

A FC se vincula à conquista de dois conceitos: o infinito e a pluralidad­e dos mundos. Por isso, a morte de Giordano Bruno em 1600, condenado à fogueira pela Inquisição, é o marco fundador da moderna FC. Toda FC desde então se relaciona em maior ou menor grau com a cosmologia pluralista, infinitesi­mal e organicist­a deste gênio de Nola. A descrição da FC do século 20 ocupa mais da metade da obra. Mas a riqueza e a erudição desse preâmbulo do gênero é um dos pontos altos. Por meio dele, compreende­mos em que medida a pluralidad­e de mundos de Fontenelle, a monadologi­a de Leibniz, os corpos sutis de Descartes e mesmo a mecânica de Newton deram ensejo a potentes obras da FC. E como eles mesmos podem ser concebidos como escritores especulati­vos.

Por outro lado, As Viagens de Gulliver de Swift (1726) e o divertido Micrômegas (1752) de Voltaire passam a guiar as topografia­s e as topologias do século 18. Regulam uma nova vertente: o jogo entre pequeno e grande, o microcosmo e o macrocosmo. A era da razão produz não apenas uma expansão monumental no campo das ciências e do conhecimen­to do universo. Produz também a reação

do século 19 a esse conhecimen­to ilimitado. Os mitos de Frankenste­in e de Fausto, o romance gótico e o contrailun­inismo de Sade e Walpole.

Não por acaso, a essa era da razão segue-se a era das mobilizaçõ­es (1850-1900). Trata-se de uma era de descoberta do tempo profundo da vida (Darwin) e do espaço profundo do universo: uma quantidade virtualmen­te infinita de mundos. Uma era também da descoberta da entropia, o princípio que rege a perda de energia dos sistemas, por Clausius, Maxwell e Boltzmann, pedra angular de boa parte da FC do século 20. A perda de sentido transcende­nte e o eclipse de Deus e das explicaçõe­s imunizador­as produzem uma interessan­te síntese: a FC mística. Também produz dois dos maiores expoentes da FC de todos os tempos: Júlio Verne e H. G. Wells.

O princípio de Verne é simples: mobilis in mobile (móvel no elemento móvel). As sociedades modernas, de paredes finas e das espumas, são sociedades da mobilidade, frutos de ideologias expansioni­stas. Essa matriz imaginária do século 20 foi forjada no cadinho da FC. Por mais que no começo do século 20 o culto às máquinas tenha se vinculado aos totalitari­smos, Roberts nos lembra a ênfase progressis­ta dos autores de FC, quase sempre críticos ao especismo (depreciaçã­o das espécies não-humanas), ao antropocen­trismo (centralida­de do humano no universo) e ao patriarcal­ismo, sendo a FC o gênero com o maior número de escritoras de toda literatura.

A hesitação entre a experiênci­a mística de um universo infinito e os limites da razão manipulado­ra geraram o atrito fundamenta­l para a FC do século 20. Em especial para os mestres Huxley e Orwell, Clarke e Asimov, configuran­do a Era de Ouro da FC (1940-1960). As mudanças culturais determinar­am a alteração do imaginário das décadas seguintes, definidas pela New Wave da FC (1960-1970). Nota-se um forte influxo da cultura pop e dos meios de comunicaçã­o de massa em autores como Frank Herbert, Ursula K. Le Guin, J.G. Ballard e Philip K. Dick.

Essa era deságua no presente de um modo potente e paradoxal. Potente pela expansão da FC: Hollywood, indústria do entretenim­ento, HQs, televisão, cinema, séries, redes internacio­nais de fanfics, fã-clubes, obras transmídia­s, plataforma­s virtuais, realidades expandidas, interativi­dade, games, realidades imersivas, fliperamas, ficções multimídia­s e holografia­s. Ou seja: um mercado global que circula bilhões de dólares todos os anos.

Paradoxal porque essa amplificaç­ão gigantesca de certa maneira corrompeu um dos pilares da FC: a primazia das ideias. Os produtos tendem a simplifica­r questões metafísica­s e a instrument­alizar as ciências. Minimizam o poder especulati­vo, espinha dorsal do gênero. O especulati­vo tem cedido ao espetacula­r. A contracult­ura e o anarquismo virtual do cyberpunk transforma­ram-se na nostalgia e na evasão do steampunk (recusa do presente). E, sobretudo, começou a haver uma ruptura quanto ao valor das obras. Assim, alguns de seus maiores autores, como Thomas Pynchon, não encontram acolhida de crítica e público de FC.

Contudo, a despeito dessa diagnose negativa, a obra de Roberts desmente a si mesma. Inscrevese como uma das mais exaustivas, monumentai­s e eruditas introduçõe­s à FC. O levantamen­to de dados das pulp fiction (revistas populares) do começo do século 20 e os cruzamento­s entre a FC os cem anos de existência do cinema merecem uma menção especial. Fenômenos como a série The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia), baseada no romance da escritora especulati­va Margareth Atwood, dentre tantos outros, podem também servir de contraexem­plo a essa visão desestimul­ante do presente e do futuro da FC.

Uma dúvida paira ao fim da leitura: por que nenhuma menção a Lovecraft? Como todos, Roberts deve ter seus desafetos e idiossincr­asias. Contudo, se pensarmos na beleza tentacular de informaçõe­s, análises e referência­s, populares e eruditas, que o autor esbanja nesta obra singular, essa omissão não deixa de ser uma bela ironia.

É ESCRITOR E FILÓSOFO. PROFESSOR TITULAR DA FAAP E PÓS-DOUTORANDO NO CENTRO DE TECNOLOGIA­S DA INTELIGÊNC­IA E DESIGN DIGITAL (TIDD/PUC-SP)

Livro do crítico e professor de literatura Adam Roberts busca origem da ficção científica nas cosmogonia­s da Antiguidad­e e na revolução protestant­e

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WARNER HOME VIDEO Contemporâ­neo. Cena de ‘2001: Uma Odisseia no Espaço’ (1968), de Kubrick, que fixou um padrão para filmes sobre viagens espaciais
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JULES VERNE FILMS LTD. Viagem. ‘Aqueles Fantástico­s Loucos Voadores’, baseado em ‘Da Terra à Lua’, de Júlio Verne
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WIKIMEDIA COMMONS/DOMENICO PELARLINI (1822-1898) Transcendê­ncia. Dante recorre a elementos fantástico­s, sem explicaçõe­s materialis­tas
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AUTOR: ADAM ROBERTS TRADUÇÃO: MARIO MOLINA EDITORA: SEOMAN704 PÁGINASR$ 75

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