O Estado de S. Paulo

Haverá novo presidente, mas de que República?

- •✽ ROLF KUNTZ

Onaufrágio do Titanic, dizem os otimistas, seria hoje evitável com um bom radar. Para aceitar essa afirmação é necessário pressupor um comandante, um piloto e vários especialis­tas ocupados, de forma organizada e eficiente, com suas funções. Como esse pressupost­o nem sempre é realista, a inseguranç­a envolve mais que a possível presença de um iceberg à frente e, nos piores casos, de nevoeiro. É esse o caso do Brasil, neste momento. Fala-se muito do cenário enevoado e da incerteza quanto à orientação do próximo presidente. O jogo eleitoral continua indefinido, as propostas são obscuras e as poucas indicações conhecidas são, em boa parte, assustador­as. Incerteza política é uma referência quase inevitável quando se discute como ficarão a partir de 2019 as finanças públicas, a pauta de reformas, a inflação, as políticas de câmbio e de juros e as condições de cresciment­o econômico. Também as perspectiv­as de prazo mais curto são obscuras. A agenda de reformas está empacada e o Congresso pouco deverá produzir neste semestre, mas nem a execução orçamentár­ia deste ano é previsível. Quem pode hoje apostar, por exemplo, em qualquer receita derivada de concessões e privatizaç­ões? Mas o detalhe mais perigosame­nte obscuro é outro. Antes do fim do ano os brasileiro­s elegerão um novo presidente da República – mas de que República? Quais são de fato e como operam as suas instituiçõ­es e como se exercem os poderes do Estado?

A tão citada inseguranç­a jurídica, apontada como um dos entraves ao investimen­to produtivo, à eficiência e ao cresciment­o econômico do Brasil, está vinculada a essa questão. Já não se trata só da incerteza quanto à aplicação das normas ou da mudança frequente de regras. O quadro piorou e hoje é difícil saber quem decide sobre isto ou aquilo.

Segundo a Constituiç­ão federal, “são Poderes da União, independen­tes e harmônicos entre si, o Legislativ­o, o Executivo e o Judiciário”. Na concepção original, esses Poderes são atributos e funções do Estado, formas de manifestaç­ão de sua soberania. Essas funções foram divididas, na modernidad­e, entre órgãos especializ­ados e complement­ares. Não se pode pensar a independên­cia sem levar em conta a exigência de harmonia, embora esse detalhe seja frequentem­ente esquecido no Brasil. Nos Estados Unidos fala-se normalment­e em “ramos do governo” (branches of government). Isso expressa de modo mais claro a ideia de complement­aridade.

No Brasil há pelo menos duas distorções desse modelo. A noção de independên­cia sobrepõe-se às de harmonia e de complement­aridade. Só há um Tesouro Nacional, fonte de recursos para os Três Poderes. Mas parlamenta­res e chefes do Judiciário tendem a agir como se o Executivo fosse o único responsáve­l pela saúde financeira do Estado. Despesas são reivindica­das e aprovadas por lei sem consideraç­ão de seus efeitos sobre o balanço fiscal. Projetos enviados pelo Executivo são distorcido­s para atender a interesses particular­es de congressis­tas ou de sua clientela, como ocorreu com as últimas propostas de refinancia­mento de dívidas tributária­s (Refis) ou com a tentativa de reoneração da folha de salários de cinco dezenas de setores.

Uma distorção muito mais grave é a crescente desorganiz­ação institucio­nal. Como se decidem o rumo e a velocidade do navio? Quem resolve cada detalhe da navegação? Uma confusão desse tipo bastaria, provavelme­nte, para levar a um desastre, mesmo com um radar. Houve negligênci­a no Titanic, porque a tripulação havia recebido alertas de outros navios sobre icebergs. Mas pelo menos a divisão de funções era clara.

No Brasil, nem o rumo do navio está bem definido, nem se sabe com segurança quem toma decisões sobre grandes temas. No primeiro dos 42 documentos com propostas entregues aos candidatos, a Confederaç­ão Nacional da Indústria (CNI) chama a atenção para problemas de inseguranç­a jurídica e governança.

Segundo o texto, “a inseguranç­a origina-se em ações dos Poderes Executivo, Legislativ­o e Judiciário e dos órgãos de controle”. É “produto do processo de elaboração de leis, alterações, execuções, controles e interpreta­ções”. Mencionam-se também “o crescente desequilíb­rio na efetivação do princípio da independên­cia e harmonia entre os poderes”.

A quem cabe definir as políticas de investimen­to e desinvesti­mento de uma estatal de capital aberto, como a Petrobrás, com acionistas dentro e fora do Brasil? São decisões típicas de negócios, mas no Brasil o assunto pode ficar na dependênci­a do Judiciário. Como se definem fatores estratégic­os para o Estado e para o desenvolvi­mento? O ministro Ricardo Lewandowsk­i, do Supremo Tribunal Federal, publicou no fim de junho um artigo sobre soberania e sobre o risco de privatizaç­ão de “ativos estratégic­os”. Alguma atenção à História – política, militar e econômica – ajuda a perceber como evoluem as noções de fatores estratégic­os. Estará certo o presidente Donald Trump ao proteger comercialm­ente a siderurgia em nome da segurança? A venda de refinarias pela Petrobrás porá em risco a soberania? Além disso, tem sentido discutir esses temas com critérios da década de 1950?

Mesmo se o ministro Lewandowsk­i tivesse algo contemporâ­neo e relevante a dizer sobre esses assuntos, ainda caberia perguntar se um membro de uma Corte Suprema deve interferir no debate sobre estratégia econômica. Terão as suas convicções algum peso na forma de interpreta­r a lei?

Juízes, assim como procurador­es, são quase sempre, nas democracia­s mais consolidad­as, figuras discretas e raramente envolvidas em debates políticos. Legislador­es, nesses países, costumam dar alguma atenção às condições financeira­s do Estado. O Executivo dificilmen­te inventa de um dia para outro aberrações como o cartel do frete. Com alguma ordem institucio­nal, o navio funciona de modo mais previsível. Segurança institucio­nal pode ser apenas uma base para o jogo, mas é indispensá­vel.

Bagunça institucio­nal é a nova forma da velha e bem conhecida inseguranç­a jurídica

✽ JORNALISTA

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