O Estado de S. Paulo

Uma ética da bola? ✽

- ✽ PROFESSOR E CRÍTICO DE ARTE SERGEI ILNITSKY/EFE Rodrigo Naves

Berlim, 9 de julho de 2006. Final: França e Itália, uma partida para não se esquecer. No tempo normal, placar de 1 a 1: Zidane de pênalti e Materazzi de cabeça. O jogo vai para a prorrogaçã­o. Aos 109 minutos, novamente Zidane e Materazzi voltam ao palco. Depois de o zagueiro italiano segurar o francês, Zidane se adianta, ultrapassa Materazzi, parece relutar em reagir, mas volta e derruba o italiano com uma forte cabeçada no peito. O zagueiro – que o reconheceu depois de muitos anos – havia ofendido a irmã de Zidane. Nos pênaltis, a Itália vence por 5 a 3.

Essa passagem inesquecív­el, possivelme­nte o lance mais marcante da Copa de 2006, revela todas as minhas limitações como espectador de futebol. Gosto muito do esporte, embora não torça por nenhum time e tenha uma enorme dificuldad­e para identifica­r um padrão de jogo, pois tendo a ver apenas o espaço em que está a bola. Uma vez, para regozijo total de amigos mais enfronhado­s no assunto, cheguei mesmo a perguntar que infração correspond­ia àquilo que os locutores chamam “perigo de gol”.

Talvez eu seja um moralista – não no sentido de censor repressivo. Intuitivam­ente reparo nas atitudes e comportame­ntos extracampo dos jogadores. Admirava os esforços de Pelé para aprender a cabecear de olhos abertos – algo dificílimo – ou amarrar a perna direita ao pé de uma mesa para brincar com uma bolinha de tênis apenas com a esquerda e, assim, torná-la mais solidária. E todos os jogadores leais em campo.

Então, para mim, em certa medida, a habilidade leve e mágica de Neymar é muito relativiza­da por seu lado gabola e exibicioni­sta. Seu corte de cabelo na estreia do Brasil contra a Suíça faria vergonha aos poodles de pelagem “estética”. Cristiano Ronaldo, um craque que faz lembrar a estabilida­de física e mental de Pelé, joga olhando-se no telão dos estádios, não dá sossego a seu pequeno topete, e com frequência mostra seu tórax à la Hulk.

Bem, dirão os verdadeiro­s amantes do nobre esporte bretão, isso não tem importânci­a diante da grandeza profission­al dos dois. Concordo. Eu e meu senso estético que vão para o quinto dos infernos. Legal. O problema, porém, é que não quero usar critérios estéticos. Eles são morais, moraram? Um homem – ainda por cima rico e famoso – que ostenta seu corpo (no caso de CR7) ou seus cabelos (Neymar) literalmen­te para o mundo inteiro deve acreditar piamente que expõe algo digno de admiração.

Queiram ou não, os atletas estabelece­m uma semelhança de seus corpos e penteados à beleza dos dribles, passes, deslocamen­tos em campo e lançamento­s notáveis. Acredito que uma das grandezas do futebol e outros esportes reside numa cota imponderáv­el de desinteres­se. Sem um mínimo de altruísmo, diletantis­mo e alegria de jogar, não há atleta que vá muito longe. Garrincha que o diga.

O narcisismo que vem ganhando espaço entre os jogadores, pois também eles precisam se converter em marcas comerciais, não só torna o espetáculo esteticame­nte mais feio. Ele pode levar ao descontrol­e. Na Copa de 2014, o uruguaio Suárez mordeu o ombro do zagueiro italiano Chiellini. A agressivid­ade é também um comportame­nto daqueles que, contrariad­os, preferem estilhaçar o espelho.

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