O Estado de S. Paulo

Com o sabor da história

Primeiro McDonald’s da Rússia, em Moscou, é símbolo da abertura do país ao capitalism­o

- Gonçalo Junior FOTOS EVERTON OLIVEIRA /ESTADÃO

As fotos em branco e preto, exibidas com destaque logo na entrada, atestam que o restaurant­e do McDonald’s da Praça Pushkin, em Moscou, tem o sabor da história em seus lanches. Ele foi o primeiro da rede norteameri­cana em território russo e um dos símbolos mais importante­s da abertura do país ao capitalism­o. As imagens mostram filas de russos que dobravam o quarteirão à espera de um lanche, novidade que representa­va o estilo ocidental de alimentaçã­o fast-food.

A loja foi aberta no dia 31 de janeiro de 1990, um ano após a queda do Muro de Berlim e um ano antes do fim da União das Repúblicas Socialista­s Soviéticas. Ainda vigorava o regime comunista. Quando foi inaugurada, a loja era a maior do mundo, com 700 assentos nos salões e mais 200 na parte externa. Debaixo de um céu de inverno, quase cinco mil soviéticos se acotovelav­am por mais de oito horas atrás de dois hambúrguer­es, alface, queijo, molho especial, cebola e picles num pão com gergelim. Os lanches são padronizad­os mundialmen­te e não há sabores locais. O comunismo se rendia ao Big Mac.

Os russos fizeram concessões ao capitalism­o, mas se mantiveram fiéis à sua cultura. A fachada e o cardápio estão escritos no alfabeto local, o cirílico, e não se vê uma palavra em inglês no recinto. Para pedir um lanche, os estrangeir­os que não dominam o russo precisam fazer a mudança do idioma nos painéis de autoatendi­mento. Só a gerente fala inglês. O Big Mac, o lanche mais popular, custa 114 rublos ou R$ 10. No Brasil, custa cerca de R$19.

O gerente Efim Voronov escolheu esta loja para trabalhar por seu pioneirism­o. Não foi fácil. Ele começou em 2014 em sua cidade natal, Iaroslavl. Conseguiu uma promoção e ganhou uma transferên­cia, em um cargo superior, para o Casaquistã­o. Na antiga república soviética, ele foi o responsáve­l pela abertura do primeiro restaurant­e da rede. Sua carreira em ascensão foi interrompi­da pelo serviço militar obrigatóri­o. Na volta à rede, teve que começar do zero.

“É importante trabalhar no primeiro restaurant­e da Rússia. É algo que traz orgulho pessoal e também uma motivação”, diz o gerente, que destaca essa informação nos treinament­os dos novos funcionári­os.

A loja mudou muito ao longo de quase três décadas. Toda a decoração mudou. A presença da loja é tão simbólica que ela ficou no meio de disputas diplomátic­as. Em 2014, ficou fechada por quase três meses por violações de saúde e segurança. Os problemas coincidira­m com o estremecim­ento das relações entre a Rússia e os EUA em função da crise na Crimeia. A Rospotrebn­adzor, agência de segurança alimentar, informou que as inspeções inesperada­s não tinham relação com o impasse político.

Embora seja oficialmen­te capitalist­a, com a população integrada aos novos hábitos de consumo, a memória do socialismo está presente no dia a dia. As privatizaç­ões, a concorrênc­ia de mercado e o consumismo ainda convivem com uma forte presença do Estado. O governo federal dá um imóvel para as famílias numerosas, a partir do terceiro filho. Como a fila é grande, a ajuda pode ser financeira. São 400 mil rublos (R$ 24 mil) que podem ser usados em educação, moradia ou aposentado­ria.

Outra herança se refere ao pensamento coletivo. É comum que as famílias aluguem um cômodo da sua casa, em geral um quarto. Isso foi incentivad­o no socialismo para compartilh­ar espaço. Hoje, ajuda no rendimento familiar.

Os frequentad­ores do restaurant­e pouco se importam com o pioneirism­o da loja ou os dilemas entre socialismo e capitalism­o. Os amigos Yuri e Andrey sabiam que aquele havia sido o primeiro, mas eles comem no restaurant­e que está mais perto. A dona de casa Andrina Yliova está mais preocupada com o refrigeran­te que sua filha acabou de derrubar. “O socialismo deixou algumas lições importante­s, mas agora estamos mais abertos para o mundo. A Copa está ajudando a mostrar que a Rússia está integrada e não quer mais ficar separada. Nós éramos um país fechado”, afirmou.

O socialismo deixou lições importante­s, mas agora estamos mais abertos para o mundo Andrina Yliova, DONA DE CASA

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Pioneiro. Loja na Praça Pushkin abriu antes do fim do comunismo

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