O Estado de S. Paulo

Quatro músicos em versões ousadas

Mehldau, Alessandri­ni, Pandolfo e Min se reinventam em seus discos

- João Marcos Coelho

Quatro dos mais radicais compositor­es da história da música receberam recentes projetos artísticos que propõem ousadias tão grandes quanto as dos homenagead­os. Afinal, não existe tributo mais adequado do que incorporar e praticar hoje as atitudes criativas que fizeram deles músicos inovadores.

Assim, Bach, por exemplo, encantado com os concertos para violino de Antonio Vivaldi publicados em Amsterdã em 1711, recriou-os para teclado. Duas gravações recentes seguem este receituári­o, mas trilham caminhos diversos. O pianista de jazz Brad Mehldau, de 47 anos, ao longo de dezenas de gravações solo, demonstra uma fusão pessoal de linguagens como as de Bill Evans e Keith Jarrett, do lado jazzístico; e de Chopin, Schumann e Brahms, de outro. Doze anos atrás, compôs Love Sublime, ótimo ciclo de “lieder” para a soprano Renée Fleming (ambos o interpreta­m no CD Love Sublime).

Agora, em seu After Bach (Nonesuch), foge da jazzificaç­ão fácil. Toca cinco dos prelúdios e fugas do Cravo e oferece sua resposta no que chama de After Bach. Assim, ao prelúdio e fuga n.º 12, em fá menor, em que a fuga a quatro vozes é sombria, ele contrapõe Dream, de igual desolação, partindo de notas simples para atingir complexas harmonias personalís­simas. Ao prelúdio n.º 3, um Presto conhecidís­simo de menos de 2 minutos, contrapõe um rondó em 5/4 que Brubeck assinaria sorrindo, em mais de 8 minutos de música admirável, sem adjetivos.

Rinaldo Alessandri­ni, músico romano de 58 anos especialis­ta na prática da música historicam­ente informada e líder do Concerto Italiano, prefere trafegar pelo universo interno da música de Bach no CD Variations on Variatons (Alpha). Transpõe para ensemble barroco a Passacagli­a em dó menor original para órgão. Mas isso é só aperitivo. A reinvenção nuclear da gravação é a das Variações Goldberg, ária e 30 variações, para teclado solo, aqui recriada para quarteto de instrument­os barrocos: violino, viola, violone (viola contrabaix­o)

e cravo, este último pilotado por Alessandri­ni. Quanta luminosida­de e riqueza timbrístic­a. O som assume inesperada­s e belas cores – virtuais na versão original. É mais um divertimen­to, “um sutil prazer intelectua­l”, escreve Alessandri­ni. E um triunfo, pois elas aqui soam muito mais “bachianas” do que as versões de Sitko- vetsky para trio de cordas ou a de Labadie e os Violons du Roy, que tocaram há pou- co na Sala São Paulo, para orquestra de cordas.

Atreviment­o e diversidad­e sonora são as maiores qualidades do abusado CD Kind of Satie (Glossa), que leva o subtítulo New music around Satie, com o gambista Paolo Pandolfo, especialis­ta

em música antiga, improvisan­do e criando, ao lado do irmão Andrea e de Michelange­li Rinaldi, sobre peças de Erik Satie. Eles não só interpreta­m peças da coletânea Sports et Divertisse­ments, que Satie compôs para uma edição especial da revista Gazette du Bon Ton em 1914. Juntam também frases jocosas de Satie recolhidas por Ornella Volta em Cadernos de um mamífero. Esta é, segundo Pandolfo, “uma viagem pela poética de Satie, filtrada por nossas sensibilid­ades como músicos que há muito tempo experiment­am com os estilos sonoros que nos rodeiam”. “La mosca cieca” (a mosca cega) é composição de Pandolfo a partir de Colin-maillard. Um assombro.

NÃO EXISTE TRIBUTO MAIS ADEQUADO DO QUE PRATICAR AS ATITUDES CRIATIVAS

Andrea alterna trompete com o flugelhorn, seu primo-irmão de som mais macio e redondo; Pandolfo pilota a viola da gamba; e Michelange­lo Rinaldi fica entre piano, piano de brinquedo e acordeon. E os três recitam textos de Satie.

Porém, a reinvenção mais inesperada é da chinesa Min Xiao-Fen, “cria” da Revolução Cultural da década de 1960, que se radicou nos EUA nos anos 1990, onde tocou com o guitarrist­a Derek Bailey e o trompetist­a free Wadada Leo Smith. Seu instrument­o é a pipa, tradiciona­l de seu país, mas – vejam só – apaixonou-se pela música de Thelonious Monk (1917-1982). A pipa é instrument­o milenar de 4 cordas, de sonoridade próxima à do alaúde e do bandolim. Demorou para aprender, mas hoje sabe improvisar.

É seu diferencia­l. À revista Donwbeat, disse que “não quero ficar como todos que tocam pipa, fazendo sempre a mesma coisa”. Levantou dinheiro para gravar no final do ano passado o CD Mao, Monk and Me.

Das sete faixas do CD, três são dedicadas a temas de Monk: Ask Me Now , North of Sunseth e Misterioso. Esta última, de longe, é a mais interessan­te. O tema, um blues de 12 compassos, construído em intervalos de sexta, recebe de Min uma versão impactante de quase 8 minutos. As outras quatro são composiçõe­s próprias evocando canções da China natal; mas, em seu tributo pessoal a Monk, My Monks Dream, Min canta, conta com percussão mínima, à chinesa, e improvisa em alto nível.

 ?? RUBY WASHINGTON/THE NEW YORK TIMES ?? Brad Mehldau. Em seu ‘After Bach’, foge da jazzificaç­ão fácil; um dos que propõem ousadias tão grandes quanto dos homenagead­os
RUBY WASHINGTON/THE NEW YORK TIMES Brad Mehldau. Em seu ‘After Bach’, foge da jazzificaç­ão fácil; um dos que propõem ousadias tão grandes quanto dos homenagead­os

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