O Estado de S. Paulo

DUAS VISÕES DA IRLANDA

- Mateus Baldi ✽

Maria Alice, protagonis­ta do novo romance de Luisa Geisler, é míope e vai até Dublin em busca da mãe desapareci­da. No caminho, encontra brasileiro­s passando aperto no país de Joyce. Já Margaret Cunningham, protagonis­ta do primeiro romance de Nara Vidal, é pobre e vai ao Brasil para fugir da grande fome que assolou a Irlanda em 1827. Para além de um retrato da condição humana, De Espaços Abandonado­s e Sorte tratam de mulheres fortes sobreviven­do em um mundo de opressão social, religiosa ou racial. Mas não só. Explorando as diversas possibilid­ades que um romance oferece, seja em termos de estrutura ou linguagem, Luisa – que fez mestrado na Irlanda – e Nara – que mora em Londres há mais de dez anos – conseguira­m criar obras que persistem mesmo após a leitura. Finalizar seus livros é pensar ter esgotado o texto, nunca o pensamento. Por e-mail, elas comentaram ao Aliás o processo de obras tão singulares.

• Por que a Irlanda como fio condutor?

Luisa: O livro surgiu não tanto pela Irlanda em si, mas pela alta quantidade de brasileiro­s, a comunidade que eu notava no país desde os anos 2000. Um amigo foi para lá antes do crash de 2008, ouvindo promessas de que ganharia dinheiro e de que mandaria tudo para casa. Quando o visitei, ele trabalhava como riquixá e ia à igreja coletar cesta básica. É claro que existe a mística-padrão da Irlanda, os leprechaun­s, a cerveja, James Joyce, Beckett, e isso me encantou desde sempre. Mas existe uma ligação forte Brasil-Irlanda que eu nunca tinha percebido. São países que têm fama de incrivelme­nte felizes e são bem ferrados. Quanto mais você presta atenção neles, mais ferrados ficam. Essa relação me interessou mais do que a Irlanda sozinha em si. Não fosse por isso, eu poderia muito bem escrever um livro que se passasse na Rússia, na Inglaterra, na Argentina. Mais do que a Irlanda, o que me cativou, o que me fez querer contar uma história, foram nossos emigrantes.

Nara: Eu me interessei por um momento da história praticamen­te ignorado nos livros. Durante o ano de 1827, alguns navios saíram da Irlanda diretament­e para o Rio de Janeiro, trazendo irlandeses miseráveis em busca de prosperida­de, fugidos da fome da batata. Utilizar a Irlanda como pano de fundo para a primeira parte do romance não foi coincidênc­ia ou uma escolha aleatória. O país carrega muitas marcas em comum com o Brasil. A opressão católica é uma das caracterís­ticas mais fortes e evidentes. E essa opressão se rasteja na narrativa não só através da Margareth, mas da Mariava, a mulher negra que também é marginaliz­ada em toda a má sorte que viveu.

• Os dois romances apresentam uma polifonia – seja nos imigrantes da Luisa, seja no deslocamen­to que Nara vai fazendo ao longo da narrativa. Como foi a construção das vozes?

Luisa: Na verdade foi uma solução para um problema, mais do que uma opção narrativa desde o início. Quanto mais estruturav­a e pensava no livro, menos eu o via como algo passível de ter um narrador neutro onisciente em terceira pessoa. Cada personagem é uma Dublin, é um universo, e isso acaba se refletindo nas vozes.

Nara: As primeiras duas partes são histórias contadas do ponto de vista da personagem principal. Fiz questão de destacá-la como a narradora porque o romance se passa num período histórico que nos foi retratado e contado exclusivam­ente por homens e classes dominantes. A parte final do livro é contada em terceira pessoa. Os personagen­s principais também se deslocam. Passam a ser dois meninos, rapazes, homens que viram lenda. Ter um período histórico bem marcado, ou seja, século 19, significou ter a liberdade de inventar a sorte que teve cada personagem fundamenta­da no que foi documentad­o até agora. O fato de não sabermos de histórias de mulheres e negros, pois não viraram nomes de ruas, me faz pensar na violência vivida por eles.

• ‘De Espaços Abandonado­s é mais de quatro vezes maior que ‘Sorte’, mas contém diversas formas textuais. ‘Sorte’, por sua vez, tem uma história profunda em apenas cem páginas. Como vocês chegaram a essas estruturas textuais?

Luisa: Por mais que o De Espaços Abandonado­s seja longo em termos de páginas, ele é um livro curto em laudas. Eu precisava de muitas páginas porque precisava de silêncio no livro. É um livro sobre abandono, sobre deixar coisas incompleta­s, sobre perseguir compulsiva­mente fios soltos. Eu não poderia fazer isso preenchend­o cada linha.

Nara: O tamanho, a brevidade do romance pode ser uma tentativa minha de gerar reflexão, ao invés de conclusão. Questionam­entos e reticência­s ao invés de esclarecim­ento, pontos finais. Afinal, a Mariava e a Margareth estão vivas em meio ao do racismo, quando jovens negros são mortos indiscrimi­nadamente, e da opressão religiosa, quando homens decidem leis que dizem respeito ao nosso corpo. É uma narrativa de fim impossível que deve se aprofundar e não se estender.

É ESCRITOR, ROTEIRISTA E FUNDADOR DA PLATAFORMA LITERÁRIA ‘RESENHA DE BOLSO’

Novos livros de Luisa Geisler e Nara Vidal têm deslocamen­tos entre o Brasil e o país de Joyce para abordar a opressão de gênero, raça e religião

 ?? MARCOS DE PAULA/ESTADÃO ?? Jovem. Luisa Geisler venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2010 com ‘Contos de Mentira’
MARCOS DE PAULA/ESTADÃO Jovem. Luisa Geisler venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2010 com ‘Contos de Mentira’
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EBC Primeiro. Nara Vidal, que estreia com ‘Sorte’
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AUTORA: LUISA GEISLER EDITORA:
ALFAGUARA 416 PÁGINAS R$ 59,90
DE LUGARES ABANDONADO­S AUTORA: LUISA GEISLER EDITORA: ALFAGUARA 416 PÁGINAS R$ 59,90
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MOINHOS 100 PÁGINAS R$ 38
SORTE AUTORA: NARA VIDAL EDITORA: MOINHOS 100 PÁGINAS R$ 38

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