O Estado de S. Paulo

O PESO METAFÍSICO DA POESIA DE HILDA HILST

- Martim Vasques da Cunha

Quatorze anos depois da morte de Hilda Hilst, ocorrida na madrugada do dia 4 de fevereiro de 2004, em Campinas (SP), é hora de termos uma avaliação objetiva do valor da sua obra, homenagead­a deste ano na Flip (Festa Literária Internacio­nal de Paraty).

Independen­temente do luxo da reedição dos volumes de poesia e prosa, lançados pela Companhia das Letras nos últimos meses, é fundamenta­l estabelece­r o correto entendimen­to do que ela realmente queria dizer com seus escritos, algo do qual a fortuna crítica se esquiva com frequência.

Portanto, sem firulas: na poesia, Hilda é absolutame­nte genial, uma artista que faz parte da mesma tradição de poesia metafísica que antes tinha poetas como Cecília Meirelles, Manuel Bandeira, o Drummond de Claro Enigma, e, entre suas contemporâ­neas, Orides Fontella e Adélia Prado. Há, sem dúvida, um toque ali e acolá de uma poesia do sagrado, cujo representa­nte maior é Jorge De Lima; mas entre Deus e as reflexões sobre o instante, Hilda prefere essas últimas porque sempre foi obcecada com o transitóri­o, com a morte e com as respostas possíveis que esta última poderia lhe dar se a menina nascida em Jaú em 1930, filha de um fazendeiro que faleceu esquizofrê­nico, tivesse sido sua companheir­a constante.

Felizmente, não foi o que aconteceu. Se nos seus primeiros livros, Hilda ainda era influencia­da pela dicção de um Drummond ou até de uma Dora Ferreira da Silva (informe-se, leitor), junto com homenagens a Camões e às “cantigas de amigo” da Idade Média, a partir de 1980, com o fenomenal Da Morte. Odes Mínimas até o derradeiro (e brilhante) Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995), ela acrescenta algo aos seus versos que jamais foi sonhado nas nossas letras. Trata-se do diálogo com a poesia dos metafísico­s ingleses, sobretudo John Donne, Richard Crashaw e George Herbert, de quem Hilda era uma leitora meticulosa e isolada, pois poucos do seu meio literário os conheciam de coração como ela.

Hilda tornou-se uma cidadã eleita desta “república invisível” e, assim, usou e abusou dos tópicos desta escola poética, surgida na Inglaterra do século 17. Estão ali a atração e o diálogo com a morte, a sedução de um Deus que violenta brutalment­e a poeta sem cessar, e a obsessão pelo efêmero, por um tempo que não dará trégua na precarieda­de do instante. Quando o Sagrado finalmente surge, é algo muito breve – e só a poesia consegue captá-lo, mesmo de maneira frágil.

Já na prosa, temos uma intensidad­e à beira do descontrol­e, graças à união que Hilda fez com as técnicas de fluxo de consciênci­a de Joyce e Beckett e a temática religiosa agoniada extraída de Nikos Kazantzaki­s e Ernest Becker (santos supremos do seu panteão particular). Isso não significa que ela era destituída de controle formal. Pelo contrário: em narrativas como Lazarus, obra-prima do seu primeiro livro de relatos, Fluxo-Floema (1970), ou na sua estreia na pornografi­a escrachada de O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990), fica evidente que ela dominava a carpintari­a literária como poucos, até para embaralhá-la aos leitores mais incautos. Contudo, a intensidad­e arriscada de Fluxo-Floema até o estupendo Com Meus Olhos de Cão (1986) perde sua força com os tais “livros de sacanagem”, não pelo assunto em si – abordado Hilda Hilst em sua Casa do Sol

como continuaçã­o da sua procura metafísica, pois a quia erotização das oc ieda deéae vidência da inocência corrompida –, mas pelo fato de que ela finalmente se entrega ao seu querido Sagrado sem nenhum anteparo. Isso provoca uma “confusão demoníaca” em seus escritos, do qual Hilda parece se transforma­r em uma prisioneir­a do seu próprio desespero, o que fica evidente em Estar Sendo. Ter Sido (1997), o derradeiro escrito em toda a sua obra– eé oque afaz ser cooptada pelas modas do momento que ela simplesmen­te abominava e das quais sua literatura não tem qualquer relação temática (como o feminismo, a transgress­ão sexual e outras veleidades).

Ainda assim, os anos de silêncio que se seguiram até seu faleciment­o não amortecera­m aforçado seu legado. Ela continuou presente entre nós, e há coisas a serem redescober­tas, como o seu teatro completo que, concebido nos anos conturbado­s de 1968 a 1970, nos deu oito peças fenomenais, entre elas o milagre que é As Aves da Noite (1969), sobre o martírio do padre Maximilian Kolbe em Auschwitz. Aliás, esta peça talvez seja, junto com o conto Lazarus, a chave para entender o que acontecia de fato no interior da alma de Hilda Hilst: sim, ela era uma ave da noite, capaz de voar na escuridão mais terrível, em busca de uma luz difícil de ser encontrada, mas da qual teve breves lampejos em uma trajetória conturbada – como todos nós.

Isto era confirmado nos gestos do dia a dia. Quando era professora visitante na Unicamp no final da década de 1990 – conforme nos conta o escritor Yuri Vieira em seu recente e belíssimo relato sobre o cotidiano de Hilda, O Exorcista na Casa do Sol (José Olympio) – ela dava uma intrincada aula sobre diversos autores (entre eles, Novalis) e percebeu um aluno inquieto, a coçar as partes pudendas diante da “obscura senhora H”. Com seu jeito sincero e direto, perguntou ao jovem: “O senhor está se sentindo mal? Algum problema?” Encabulado, o rapaz disse: “Só queria saber o seguinte, professora: a senhora realmente acredita nesse negócio da imortalida­de da alma?” Sem pestanejar, Hilda Hilst respondeu ao pobre coitado: “Eu acredito na imortalida­de da minha alma! E, se você não parar de coçar o saco e começar a formar agora mesmo uma alma digna desse nome, não haverá nada que sobreviva à sua morte.”

Eis a única exigência da sua obra conosco: cuide da sua alma. E este foi o único tema sobre o qual ela meditou em toda a sua vida, sem exceção. Com seus acertos e erros, o voo noturno de Hilda Hilst é, sem dúvida, um feito insuperáve­l na poesia brasileira – e uma forma de curar as trevas que ainda dominam a busca da nossa imortalida­de.

É AUTOR DOS LIVROS ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’ (VIDE EDITORIAL, 2012) E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA) HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’ (RECORD, 2015); PÓS-DOUTORANDO PELA FGV-EAESP

Homenagead­a pela Flip em 2018, a poeta tem uma faceta espiritual pouco explorada pela fortuna crítica, que prefere ligar sua obra ao feminismo

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HEITOR HUI/ESTADÃO Residência.

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