O Estado de S. Paulo

A NOSTALGIA BUCÓLICA DE GOGOL NA AURORA DO MODERNO

- Flávio Ricardo Vassoler ✽

A nova edição de Almas Mortas (Editora 34, tradução de Rubens Figueiredo), do escritor russo de origem ucraniana Nikolai Gogol (1809-1852), nos apresenta o ensaio Almas Mortas: O Espelho e a Estrada, de Donald Fanger, professor emérito da Universida­de de Harvard e autor do livro The Creation of Nikolai Gogol. Para além do romance – ou melhor, do “poema”, como Gogol o denominou – ao longo do qual Tchítchiko­v e os proprietár­ios de terras são os principais personagen­s e exemplares do caráter russo e ao princípio do qual Tchítchiko­v toma posse do seu capital ambíguo, que consiste apenas de palavras num pedaço de papel – as listas penhorávei­s dos servos mortos (as almas mortas) que ele comprou –, Fanger considera que “o enredo é engolido pelos retratos e inundado pelos detalhes. (...) O romance escapa para a paisagem de beira de estrada ou para o doméstico; as propriedad­es rurais e seus donos são países, ilhas em meio ao oceano; cada casa é desenhada como um ambiente autodelimi­tado, com seu colorido local, específico; como é adequado em uma viagem, o princípio geográfico vem à dianteira, sendo o personagem representa­do fundamenta­lmente como um relevo que se ergue da paisagem. (...) O poema converge no conceito espacial de um panorama; a prosa se torna um atributo da terra.”

É como se Almas Mortas, cuja trajetória narrativa começa e termina na estrada, compusesse um mosaico de soslaios nômades de Tchítchiko­v; é como se, ao invés de lançar o olhar como uma rede para a geografia múltipla da Rússia, a fenomenolo­gia da paisagem abarcasse a própria estrada narrativa, de modo a transforma­r a sensibilid­ade de Tchítchiko­v em um anteparo para as impressões (as muitas veredas) que vão se sobrepondo com profunda beleza. Vejamos, então, o que o narrador gogoliano – o andarilho do olhar – nos diz: “Assim que a cidade ficou para trás, logo se desenharam, de ambos os lados da estrada, as bagatelas a que estamos acostumado­s: morrinhos, bosques de abetos,

arbustos baixotes de pinheiros jovens e raquíticos, troncos queimados de pinheiros velhos, matagal bravo e outros disparates semelhante­s. Apareceram vilarejos que se estendiam como cadarços, construído­s como se fossem antigos montes de lenha, cobertos por telhados cinzentos, abaixo dos quais havia ornatos de madeira entalhados nos beirais, que acabavam parecendo toalhas bordadas pendentes. Alguns mujiques, como de hábito, bocejavam, sentados em bancos diante dos portões, em seus casacos de pele de carneiro. Camponesas, de cara gorda e peitos enfaixados, olhavam pelas janelas do primeiro andar; nas janelas da parte de baixo, um bezerro espiava ou um porco punha para fora seu focinho cego.”

À diferença de um Fiodor Dostoievsk­i (18211881), cujas obras são vistas pela fortuna crítica como um paisagismo dos estados convulsos e escatológi­cos da alma, Nikolai Gogol verte suas almas mortas para o caráter vivaz e telúrico da Rússia profunda, trazendo à tona um mosaico folclórico de que os leitores citadinos à época do capitalism­o nascente (primeira metade do século 19) começavam a se apartar. Um espectro de nostalgia bucólica ronda o romance de Gogol, bucolismo que a Rússia tende a comunicar ao Brasil, já que, guardadas as diferenças, ambos os países periférico­s passaram por processos de modernizaç­ão, êxodo rural e urbanizaçã­o tardios em comparação com as nações centrais do capitalism­o. É assim que Nikolai Gogol e suas Almas Mortas parecem ter dado à luz toda a nostalgia do chilreio dos pássaros, do galo da aurora e dos pés descalços sobre o orvalho matutino; do moedor de café acoplado à mesa de madeira rústica e da saudação com o chapéu de palha ao camponês que volta da lavoura (“Taaarrrde!”); do coador de pano para o café (muitas vezes, uma meia velha) e das cinzas ainda fumegantes do fogão à lenha; do doce de abóbora com cravo da bisavó e dos acordes dos grilos quando o escuro começa a despencar; do bule de café chiando e do leite quente cheio de nata na caneca de alumínio retorcido do bisavô; da bênção e do beijo de boa noite da avó antes que o sono venha sobre o travesseir­o de pena de ganso (ou seria de galinha?).

Ao fim de seu ensaio sobre Gogol, Donald Fanger cita o italiano Dante Alighieri (1265-1321), para quem os livros deveriam ser explicados para além do sentido literal de suas letras. Segundo Fanger, o poeta florentino fala sobre as dimensões alegórica (“o sentido escondido sob o manto das fábulas”), moral (“para benefício próprio e dos descendent­es”) e mística (“quando um livro é espiritual­mente explanado”). Sendo assim, a nostalgia bucólica de Almas Mortas alcança o estatuto de uma ontologia do tempo perdido. A ourivesari­a do detalhe, em Gogol, tenta estancar o fluxo irredimíve­l do tempo com o mosaico (e o afago) da memória, o canto fúnebre de uma Rússia que, enquanto agoniza, ainda entoa a paisagem (e a aragem) de seu passado.

É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTE­RN UNIVERSITY (EUA)

Nova edição do livro ‘Almas Mortas’ traz ensaio crítico da obra do escritor russo que, diferente de Dostoievsk­i, volta o olhar à Rússia profunda

 ?? CHRISTOPHE RAYNAUD DE LAGE/FESTIVAL D’AVIGNON ?? Palco. Peça de ‘Almas Mortas’ dirigida por Kirill Serebrenni­kov
CHRISTOPHE RAYNAUD DE LAGE/FESTIVAL D’AVIGNON Palco. Peça de ‘Almas Mortas’ dirigida por Kirill Serebrenni­kov
 ?? WIKIMEDIA COMMONS ??
WIKIMEDIA COMMONS
 ??  ?? ALMAS MORTAS AUTOR: NIKOLAI GOGOL
TRADUÇÃO:
RUBENS FIGUEIREDO
EDITORA: 34
432 PÁGINAS
R$ 79
ALMAS MORTAS AUTOR: NIKOLAI GOGOL TRADUÇÃO: RUBENS FIGUEIREDO EDITORA: 34 432 PÁGINAS R$ 79

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil