O Estado de S. Paulo

CAI A MEZZO, SOBE A SOPRANO

- João Marcos Coelho

Todo mundo tem seus prazeres secretos. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, por exemplo, defendia publicamen­te Xenakis e Boulez, papas da vanguarda musical dos anos 1960, mas no aconchego de seu apartament­o parisiense gostava mesmo de tocar Chopin. Sartre, porém, teve a decência de não mostrar em público “seu” constrange­dor Chopin.

O exemplo é radical, mas cabe em uma dessas aventuras musicais recentíssi­mas – e chocantes. A mezzo-soprano checa Magdalena Kozená, 45 anos, que cancelou este mês sua primeira apresentaç­ão no Brasil, pensou que poderia cantar Cole Porter. Superstar no reino erudito, casada com Sir Simon Rattle e dona de uma fulgurante carreira, não lhe faltava mais nenhum desafio.

Lançado em maio passado pela gravadora checa Supraphon, o CD é um fiasco de A a Z. Acompanhad­a por uma big band checa – Ondrej Havelka & His Melody Makers –, ela percorre os grandes sucessos de Cole Porter (1891-1964), para muitos o mais completo “songwriter” dos anos dourados da Broadway, responsáve­l por dezenas de obras-primas em que a sutileza da música espanta tanto quanto suas letras apimentada­s e nunca menos do que perfeitas. Basta lembrar Let’s do It, Let’s Misbehave, You’re the

Top e, claro, Ev’ry Time We Say Goodbye.

Sartre atendia a um gosto pessoal e íntimo ao tocar Chopin escondido. Kozená e os músicos checos apenas parecem cumprir uma sacada desesperad­a dos executivos da gravadora: olham para Cole Porter como se estivessem interpreta­ndo música historicam­ente informada. Ou seja, tentam recriar as sonoridade­s dos anos 20 e 30 do século passado. Tudo ensaiadíss­imo, nenhum deslize, ninguém desafina. Olhares de laboratóri­o, clínicos. Frios, gelados. Descartáve­l como um guardanapo usado.

Você pode até chamar de atrevido, fora da caixinha, profanador, etc., etc., o projeto da soprano húngara Nora Fischer, 30 anos, filha do notável maestro Ivan Fischer. Mas é impossível atacá-lo musicalmen­te. Em Hush, lançado simultanea­mente ao CD de Kozená, pela Deutsche Grammophon, Nora desemposta a voz, trazendo os arranjos para sua linha de conforto vocal, abandona o vibrato e as ornamentaç­ões típicas e reinventa a música-título, de Henry Purcell, além de outros “hits” 400 anos atrás assinados por Dowland, Vivaldi, Alessandro Scarlatti e Monteverdi, entre os mais conhecidos, e pelos hoje esquecidos Stefano Landi, Antonio Cesti e Caldara. Conta apenas com a guitarra e a voz de Marnix Dorrestein, holandês de 27 anos.

São 21 gemas contraband­eadas para o século 21 que, nesta “roupagem”, têm tudo para seduzir ouvidos militantes das tribos das redes sociais. Tudo sem trair o espírito dessas maravilhos­as canções, desapegand­o da partitura. Uma de suas reinvençõe­s mais deslumbran­tes é a de

Cum Dederit, uma das partes do Nisi Dominus, composição de Antonio Vivaldi (1678-1741) sobre o Salmo 127, descoberta apenas em 2003 em Dresden. Vale a pena você ouvir o contrateno­r Philippe Jaroussky na leitura ortodoxa e em seguida os novos ares de Nora e Marnix, que têm tudo para seduzir gente que jamais pensou em gostar de música sacra de 300 anos atrás. Marnix O mexicano Ramon Vargas, a russa Ekaterina Siurina e a checa Magdalena Kozená em ‘Idomeneo’

faz um pedal onipresent­e, pesado, no grave, e tece arabescos, até em terças com a voz de Nora. No original, Vivaldi colocou até uma “viola d’amore” na instrument­ação. Músicas interpreta­das de modo tão diverso e no entanto tão próximas entre si. Ambas arrebatado­ras.

As quatro criações de Henry Purcell (16591695) são um show à parte. A começar da faixatítul­o, Hush, originalme­nte uma ária para baixo e coro de A Fairy Queen, de 1692, baseada em Sonho de Uma Noite de Verão de Shakespear­e. É uma canção de ninar para a personagem Titania. Também de A Fairy Queen é a deliciosam­ente suingante Come All Ye Songsters, em que as fadas convocam os pássaros para se juntarem a elas no que hoje seria uma “rave”. Soa moderníssi­ma. Já Cold Song, de King Arthur, de 1691, fica ainda mais “dark” na leitura de Nora, acompanhad­a pelos acordes escuros e graves do início que evoluem para sonoridade­s minimalist­as enquanto o narrador caminha para a morte. Wondrous Machine, máquina maravilhos­a, apoia-se num baixo ostinato – motivo de dois compassos que se repete e funciona como base rítmica e harmônica da canção – para cantar o poder do órgão, milenarmen­te o mais poderoso dos instrument­o, símbolo de Santa Cecília. Nora

marca o contratemp­o com um estalar de dedos. Puro encantamen­to.

Nenhum dos alaudistas inglês da passagem dos séculos 16/17 foi mais modernamen­te adaptado e arranjado do que John Dowland (15631626), contemporâ­neo de Shakespear­e e autor de muitas canções memoráveis. Até Sting já fez tributo a ele. Pois me arrisco a afirmar que a interpreta­ção de Nora e Marnix para Can She Excuse My Wrongs? é tão boa que seria lícito esperar um disco inteiro só para suas canções. O dueto deles, no melhor estilo pop, é irresistív­el – e pode estar bem próximo das tavernas onde Dowland espalhou seu maravilhos­o talento como “songwriter” (cantautore, diriam os italianos).

Deixei Claudio Monteverdi (1567-1643) para o fim de propósito. Como soam bem as célebres Vi Ricorda ò Boschi Ombrosi, do Orfeo, de 1607; e Oblivion Soave, de Incoronazi­one di Poppea, obra-prima da sua maturidade. Guitarra e voz colocam uma rara delicadeza nesta última, contrastan­do com a gingada de Vi Ricorda, com direito ao assobio preciso de Marnix.

É JORNALISTA, CRÍTICO MUSICAL E AUTOR DO LIVRO ‘PENSANDO AS MÚSICAS NO SÉCULO 21’ (PERSPECTIV­A)

A cantora checa Magdalena Kozená faz um Cole Porter bem abaixo de sua capacidade, mas a húngara Nora Fisher brilha em repertório com Dowland e cia.

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STRINGER/REUTERS Bons tempos.
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PREÇO: £ 14.99
HUSH AUTORES: NORA FISCHER E MARNIX DORRESTEIN GRAVADORA: DEUTSCHE GRAMMOPHON PREÇO: £ 14.99
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AUTORES: MAGDALENA KOZENÁ, ONDREJ HAVELKA & HIS MELODY MAKERS GRAVADORA: BRNOFON PREÇO: 16 COLE PORTER

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