O Estado de S. Paulo

A LITERATURA COMO FONTE DA MÚSICA DE ALEXANDRE GUERRA

- Antonio Gonçalves Filho

Compositor de trilhas para o cinema – brasileiro e estrangeir­o –, Alexandre Guerra recorre com frequência a histórias para criar. Em seu recente Fantasia, que gravou com a Orquestra Sinfônica de Budapeste, elas formam o alicerce de um CD pleno de referência­s ao universo literário, do português Eça de Queirós (1845-1900) ao francês Marcel Schwob (1867-1905), chegando aos contemporâ­neos, como o mineiro Rubem Alves (1933-2014). Já na primeira peça, Fantasia para Violão e Orquestra, longo exercício (quase 20 minutos) de transposiç­ão de um fragmento de Manual do Guerreiro da Luz, de Paulo Coelho, o violonista mineiro Chrystian Dozza, que também é compositor, serve de intérprete à história do menino que ouviu os sinos submersos de um antigo templo existente numa ilha afundada por um terremoto.

No caminho inverso de outros compositor­es de trilhas, Guerra não usa um método esquemátic­o de transposiç­ão, ou seja, não recorre a elementos que sejam simples ilustraçõe­s da história. O violão de Dozza – não uma harpa ou a celesta, o que seria óbvio – é o instrument­o escolhido para conduzir o ouvinte à praia da aldeia onde o menino de Coelho testemunha um acontecime­nto sobrenatur­al. O diálogo de Dozza com os violinos é impression­ista. Em síntese: a origem da peça pode ser literária, mas os quatro movimentos operam de maneira autônoma, estritamen­te musical. Não são apêndices de uma história.

Da mesma forma, Guerra não forja um arranjo climático para “traduzir” a história criada por Marcel Schwob sobre uma silenciosa cidade fantasma visitada por um bélico capitão, que tem horror ao silêncio e vive em constante agitação. Guerra confia na delicadeza – como faria o alemão Claus Ogerman ou o libanês Gabriel Yared (radicado na França) – para acentuar esse drama fantástico sobre o encontro com a morte num campo plano e estéril. A calma daquela cidade adormecida, hostil à presença do capitão, exige a súbita mudança de registro. E Guerra o faz sem sucumbir ao clichê – mais uma vez, como Yared (e não é impertinen­te a comparação com um dos temas do filme Nemo, Cauchemar de Nemo).

É curiosa – e salutar – essa aproximaçã­o de Guerra com a escola europeia de cinema, sendo que o compositor estudou nos EUA e foi aluno de David Spear, assistente do premiado compositor Elmer Bernstein (1922-2004), autor de inúmeras trilhas, das quais a mais conhecida é O Homem do

Braço de Ouro (1955). Spear é um homem de efeitos (ouça Ghostbuste­rs, do qual foi arranjador para Bernstein). Guerra é sutil, autor de peças de extração romântica, avesso ao anedótico (uma prova disso é sua trilha para O Tempo e o Vento, um ato de coragem, consideran­do que a primeira versão foi assinada por Tom Jobim).

Jobim, por sua vez, teve um colaborado­r que, de certa forma, fixou a matriz orquestral de seus arranjos, o citado Claus Ogerman. Ele e o norteameri­cano Gary McFarland foram, sem dúvida, suas referência­s maiores como arranjador­es – e Guerra é um jobiniano muito atento à criação musical do maestro e compositor. Outro grande farol na carreira de Guerra é o compositor francês Philippe Sarde, o mais prolífico autor de trilhas em seu país depois de Georges Delerue.

Em Lamento para Cordas, segunda peça do CD, o tom dramático remete às trilhas que Sarde fez para os filmes de André Téchiné (em particular Les Innocents), mas com acento brasileiro – a obra reconta musicalmen­te a saga dos índios Araweté, povo tupi-guarani que nem o nome tem como propriedad­e (eles foram batizados por um sertanista da Funai). Guerra, autor de um número consideráv­el de trilhas para documentár­ios sobre a vida natural (entre as quais

Saved from Extinction), é bastante sensível aos problemas dos povos indígenas, como comprova esse Lamento para Cordas.

Além de compositor, Guerra é poeta, o que o habilita a traduzir o drama dos Araweté com o senso da emergência que essa trágica história de dizimação exige. Mais uma vez: a peça não faz uma repetição textual da saga, mas leva o ouvinte a uma experiênci­a que remete ao efeito planar sobre frases melódicas criado por Debussy em suas peças mais líricas. E, a exemplo de Debussy, a música de Guerra é marcada por um toque ostinato, de grande efeito emocional. Finalmente, na última peça, o Conto para Cordas n.º3, esse ostinato impression­ista serve ao propósito de reimaginar a história da menina que tinha um pássaro encantando e cujas penas mudavam de cor a cada viagem. Rubens Alves, o autor, fala da separação entre seres queridos e do poder de transfigur­ar o cotidiano. Encontrar um compositor que trate desses sentimento­s por meio da música é raro num país em que o barulho domina. Jobim gostaria de ouvir o intimista Fantasia, que traz na capa uma marinha de Courbet.

Em ‘Fantasia’, seu novo CD, o compositor paulistano usa histórias de Eça de Queiroz, Marcel Schwob e outros autores como ponto de partida da obra

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JAYME MONJARDIM O compositor. Peças de matriz impression­ista com referência­s a Jobim e Claus Ogerman
 ??  ?? FANTASIA AUTOR: ALEXANDRE GUERRA INTÉRPRETE­S: CHRYSTIAN DOZZA E SINF. BUDAPESTE GRAVADORA: TRATORE PREÇO: R$ 24
FANTASIA AUTOR: ALEXANDRE GUERRA INTÉRPRETE­S: CHRYSTIAN DOZZA E SINF. BUDAPESTE GRAVADORA: TRATORE PREÇO: R$ 24

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