UM HINO EXPATRIADO
O menino de cinco anos e sua família viajaram milhares de quilômetros para escapar. Quando finalmente chegaram em solo americano, livres dos saqueadores que tinham queimado sua casa, o menino foi colocado em uma área de confinamento com seu irmão e irmãs, enquanto os funcionários da imigração decidiam seu destino.
Foi a partir dessa história que nasceu uma peça clássica de música. A família, fugindo da perseguição religiosa na Rússia em 1893, foi logo reunida e autorizada a entrar no país. E aquele garotinho, nascido Israel Beilin, cresceria e se tornaria Irving Berlin. Vinte e cinco anos depois da emigração, no mesmo ano em que se tornou cidadão americano, ele compôs God Bless America.
A música, que soa com fervor especial a cada 4 de julho como uma espécie de hino nacional não oficial, completa cem anos este ano, e vale lembrar suas origens nesse momento difícil nas relações dos EUA com os futuros imigrantes. Berlin disse ter ouvido a frase pela primeira vez de sua mãe, que frequentemente falava as palavras com uma emoção que ele mais tarde disse “ser quase uma exaltação”, apesar da pobreza deles. Sua filha Mary Ellin Barrett escreveu mais tarde que Berlin valorizava cada palavra: “Era a terra que ele amava. Era seu lar doce lar. Ele, o imigrante que tinha sido bem-sucedido, estava dizendo obrigado.”
Foi o desejo de prestar serviço ao seu país adotivo durante a 1.ª Guerra Mundial, que impeliu a Berlin de 30 anos, já um compositor de sucesso, a se naturalizar como cidadão em fevereiro de 1918. Em maio daquele ano, ele começou seu serviço militar e foi convidado para escrever um show para soldados. God Bless America foi originalmente concebida como o final da revista, “Yip, Yip, Yaphank”, mas no final, Berlin decidiu não a incluir. Foi arquivada e esquecida por 20 anos, até que ele a redescobriu e forneceu uma versão revisada para a estrela do rádio Kate Smith, que a cantou em 10 de novembro de 1938, e a repetiu semanalmente.
A história de sucesso do imigrante Berlin ligou a música, no período logo após sua estreia, a um crescente apelo público por tolerância frente à ascensão do nazismo. A primeira referência à canção no New York Times descreve uma performance em um jantar patrocinado pela Conferência Nacional de Cristãos e Judeus, em que líderes religiosos repudiam a “doutrina da raça e do ódio” na Europa totalitária e pedem aos americanos que não deixem isso acontecer em suas comunidades. Três meses depois, Berlin liderou uma multidão em
God Bless America após um discurso contra o fanatismo feito por Eleanor Roosevelt.
A música também inspirou uma retórica antissemita e xenófoba dirigida a Berlin, um judeu que ousou pedir a Deus que abençoasse a América. Em uma manifestação conjunta da Ku Klux Klan e da organização pró-nazistas German American Bund em 1940, os líderes pediram um boicote à canção. Uma semana depois, um artigo zombeteiramente insinuando que Deus abençoava os simpatizantes nazistas apareceu no jornal do Bund; o autor zombou da canção como uma peça que refletia a “atitude da horda de refugiados”. Berlin também enfrentou o fogo à esquerda: God Blessed America For Me, de Woody Guthrie, foi um protesto furioso contra a complacência nas letras de Berlin. Mas Guthrie logo mudou o refrão para This Land Is Your Land (Essa terra é a sua terra).
God Bless America foi cantada por manifestantes anticomunistas, bem como por grevistas. Ativistas dos direitos civis usavam a música com frequência; foi cantada por crianças afro-americanas em protestos contra a segregação escolar no Mississipi e Louisiana, e por participantes na marcha de Martin Luther King Jr. em 1963 em Detroit.
Mas essa multiplicidade de significados tornouse bastante unificada durante as divergências culturais que começaram em meados dos anos 1960, quando God Bless America tornou-se cada vez mais um símbolo para uma visão do mundo de brancos e conservadores. Significados anteriormente maleáveis por trás das letras se tornaram fixos, e lá se foi o subtexto pluralista da música.
Em vez disso, veio à tona um entendimento tácito de que a música representava um aviso para aqueles que desafiavam o status quo, assim como Woody Guthrie já havia sentido. Em contraste dramático com a conexão original com uma mensagem de tolerância, no final dos anos 1960, o político segregacionista Lester Maddox reivindicou a canção como um hino pessoal, e nos anos 1970 ela foi usada por ativistas de direita que se opunham à integração escolar e à habitação popular.
A inclinação direitista da canção continuou persistente, mas foi temporariamente suspensa após os ataques terroristas de 11 de setembro, quando se tornou um emblema sonoro de unidade e luto coletivo – cantada em memoriais oficiais nas escadas do Capitólio, em vigílias nos bairros à luz de velas, nos teatros da Broadway e nos jogos de beisebol profissionais. E mesmo quando foi adotada como um hino conservador, continuou a ser usada como um símbolo para a inclusão de imigrantes na cultura americana, geralmente cantada durante cerimônias de cidadania e naturalização.
Em 2006, ativistas por direitos aos imigrantes cantaram God Bless America. Mas o viés xenofóbico da música infelizmente persistiu, como na reação à apresentação de Marc Anthony no jogo AllStar de 2013 da Major League Baseball. O Twitter explodiu de indignação, com alguns questionando o direito de Anthony de executar a música com base em sua percepção de estrangeiro (apesar do fato de ser um cidadão americano, nascido em Nova York de origem porto-riquenha).
Se a família de Irving Berlin tivesse procurado asilo nos Estados Unidos hoje em dia, eles provavelmente teriam sido deportados – considerados criminosos apenas por pousar em solo americano em sua fuga da perseguição. O menino de cinco anos poderia ter sido mantido na prisão, separado de seus pais, até serem mandados embora para um destino desconhecido. Como God Bless America celebra seu 100.º aniversário este verão, qualquer um que a canta deve lembrar que começou como – e na raiz sempre será – uma canção de amor para este país, de um imigrante grato por ter tido a chance de uma nova vida.
Há cem anos, Irving Berlin compunha a música que se tornou um símbolo do nacionalismo americano, mas ele era um imigrante russo