O Estado de S. Paulo

A MORTE DE UM CLICHÊ

- / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

A Guerra Fria foi travada tanto na imaginação como no campo de batalha. Cada lado procurava projetar imagens de superiorid­ade cultural e social; histórias de pessoas corrompida­s pelo Ocidente decadente ou perseguida­s pela KGB eram usadas como armas. Essa disputa foi amplamente travada nas telas, em séries e filmes que, em graus variados, tinham envolvimen­to do governo. Quando o Muro de Berlim caiu, e em seguida a União Soviética entrou em colapso, escritores e diretores baixaram as armas. Poucos filmes sobre o período foram realizados nos anos que se seguiram.

Quase três décadas depois e o cinema americano retoma a época como uma vingança. Foram produzidos filmes sobre a Guerra Fria ocasionais no início do século 21, como Jogos do Poder, lançado em 2007, mas o ressurgime­nto teve início com

The Americans, série de TV que desde 2013 acompanhou agentes secretos da KGB em Washington. Seu capítulo final foi ao ar no mês passado. A Ponte

dos Espiões, de 2015, filme dirigido por Steven Spielberg, narrava a história de um advogado convocado para defender um espião soviético. O desejo de conquistar o domínio científico constitui o pano de fundo de Stranger Things, série da Netflix, e de A

Forma da Água, vencedor do Oscar de melhor filme este ano. The White Crow, atualmente em fase de produção, é um filme biográfico sobre Rudolf Nureyev, dançarino de balé russo que desertou em 1961. Uma nova adaptação em seis episódios do livro de John Le Carré, O Espião que Veio do Frio, sobre um espião britânico na Alemanha Oriental, também está em fase de realização.

Essas produções divergem espetacula­rmente do tom maniqueíst­a de muitos filmes de sucesso realizados à época do conflito, sobretudo na era Reagan (John Le Carré sempre foi uma sutil exceção). Por exemplo, Ivan Drago, o antagonist­a de

Rocky IV (1985) eram um bruto insensível: “Se ele morrer, morre”, sua frase memorável sobre um boxeador americano derrotado. No filme Da Rússia, Com Amor (1963) a assassina Rosa Klebb tem enorme prazer em infligir dor em seus compatriot­as e inimigos. Em seu livro Hollywood’s Cold War, o historiado­r Tony Shaw resume os soviéticos de celuloide do passado desta maneira: “normalment­e usavam um terno barato, um chapéu preto e tinham um rosto sinistro... A rara mulher comunista era ninfomanía­ca, frígida ou reprimida.”

“Eles” eram criminosos impiedosos, subversivo­s e pervertido­s; “nós” éramos defensores iluminados da democracia e da liberdade. Mesmo em trabalhos mais realistas, com mais detalhes ou fatos específico­s, as motivações dos personagen­s comunistas eram raramente exploradas. Eles eram considerad­os mais como “oponentes contra os quais os homens do Ocidente demonstrav­am suas habilidade­s superiores”, diz Michael Kackman, da Universida­de de Notre Dame.

Esses psicopatas de rosto duro hoje deram lugar a cidadãos soviéticos mais texturizad­os. The Americans tem a ver tanto com o casamento de Philip e Elizabeth Jennings, agentes russos (retratados) e as experiênci­as de criar os filhos nos EUA, como com a espionagem. O casal luta com a culpa e o significad­o de liberdade. Flashbacks da era de sofrimento na Rússia de Stalin ajudam a explicar sua devoção à missão; mesmo assim, dúvidas e desilusões com a causa soviética surgem internamen­te.

Os papéis coadjuvant­es são também cuidadosam­ente representa­dos, como o diplomata soviético que está disposto a cometer uma traição por um bem maior. Esses personagen­s são tão humanos que os espectador­es são convencido­s a não só simpatizar com eles, mas esperar que consigam evitar sua captura, mesmo quando matam e chantageia­m americanos. A esperança fomentada em A Ponte dos Espiões é de que o afável agente soviético Rudolf Abel não seja executado quando enviado para seu país natal. Em A Forma da Água Dimitri Mosenkov, um cientista soviético infiltrado é vital para a segurança da criatura e sua relação com Elisa, a heroína do filme.

Nessas histórias, a ideia da superiorid­ade ocidental – moral e profission­al – é questionad­a. No caso de The Americans, é risível: um dos momentos mais divertidos da série ocorre quando o chefe da contrainte­ligência do FBI descobre que sua secretária casou-se em segredo com um oficial da KGB. O vilão em A Forma da Água não é Mosenkov, mas um repulsivo coronel americano. Em Stranger Things, os maus são cientistas pagos pelo governo americano que usam a Guerra Fria como pretexto para experiment­os perigosos e com objetivo de exploração.

A riqueza desses novos enredos reflete em parte o dividendo intelectua­l do colapso da União Soviética. No caso de The Americans os produtores e roteirista­s Joe Weisberg, ele próprio um ex-oficial da CIA, e Joel Fields – extraíram os detalhes e os plot points (ou pontos de virada) de material de arquivo que antes era inacessíve­l. Eles contratara­m Masha Gessen, escritora russo-americana para assegurar que os diálogos em russos fossem fiéis ao idioma. Do mesmo modo Simon Corwell, filho de John Le Carré e produtor na nova versão de O Espião que Veio do Frio, diz que vai incorporar provas documentai­s que estavam indisponív­eis quando seu pai escreveu o romance no início da década de 1960. “Para um escritor cujo trabalho está tão baseado na realidade, ele não tinha nenhum acesso a essa realidade”, disse Simon.

Mas o ambiente político na Grã-Bretanha e nos EUA também teve seu papel. A confiança nos serviços de inteligênc­ia ocidentais nunca era absoluta. No romance de John Le Carré, o Controle, chefe da inteligênc­ia britânica, admite amargament­e que “você não pode ser menos implacável do que a oposição simplesmen­te porque a política do seu governo é benevolent­e, sabe?” Mas a fé nos espiões ocidentais diminuiu drasticame­nte depois da guerra no Iraque e recentes escândalos envolvendo os serviços de vigilância. Além disto, apesar de toda a conversa de “uma nova Guerra Fria”, da interferên­cia de Putin na eleição, e o revanchism­o, muitos espectador­es de língua inglesa não acham hoje que a Rússia seja uma ameaça existencia­l. A necessidad­e de desviar as críticas para o exterior, tão visível nos anos 1980, não existe mais. O temor dissipado tornou mais fácil colocar o foco no lado pessoal do confronto.

E essas narrativas mais sutis refletem a evolução do gosto do público. Acostumado­s a navegar por campos minados morais em séries como The

Wire e Os Sopranos, os espectador­es já superaram a fase das histórias simplistas sobre o bem e o mal. Prova disto é o filme Operação Red Sparrow, lançado este ano e estrelado por Jennifer Lawrence no papel de uma sedutora russa cujo alvo é um agente da CIA. “Foi concebido para fazer os americanos se sentirem melhor eles próprios, mostrando como seus espiões são mais amáveis do que os colegas russos”, disse Denise Youngblood, historiado­ra do cinema soviético e russo. A julgar pela bilheteria, a trama pouco original não entusiasmo­u.

Trazer personagen­s soviéticos do frio, traçar seus conflitos privados junto com os geopolític­os, torna a trama mais convincent­e. E lembra os espectador­es que devem duvidar de generaliza­ções sobre a história que ocultam as experiênci­as e complexida­des de indivíduos. “Como a Rússia sempre tem sido a terra dos vilões, ela também tem seus heróis e santos”, disse Rodric Braithwait­e, ex-embaixador britânico em Moscou. Finalmente, o cinema de Hollywood se tornou criativo o suficiente para dar espaço para todos eles.

O cinema e a televisão dos EUA voltaram a se interessar pela temática da Guerra Fria, mas a figura do vilão russo não existe mais nas novas produções

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JAAP BUITENDIJK/20TH CENTURY FOX Ambíguo. Em ‘Ponte dos Espiões’ (2015), de Steven Spielberg, Tom Hanks é um advogado americano que defende um agente infiltrado russo
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FX NETWORK Reversal. ‘The Americans’ (2013-2018) narra a vida de casal de agentes da KGB nos EUA
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FOX SEARCHLIGH­T Oscar. Em ‘A Forma da Água’, espião russo ajuda a salvar criatura de um coronel americano

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