O Estado de S. Paulo

Os jogos entre nações possuem caráter épico

Luiz Carlos Merten

- Luiz Carlos Merten REPÓRTER ESPECIAL DO CADERNO 2 DO ‘ESTADÃO’ Glauco de Pierri ENVIADO ESPECIAL / MOSCOU

A Copa é coisa de cinema

Já fui redator de Esportes e sou colorado, torcedor do Inter, mas confesso que não tenho maior interesse pelo futebol de cada dia. Já a Copa é outra coisa. Os jogos entre nações possuem caráter épico. E, quando são mata-matas, a emoção redobra. A Copa continua sendo gloriosa para torcedores bissextos, mesmo após a eliminação do Brasil. Talvez não sejam grandes jogos, mas são épicos. Não é sempre que se vê, mesmo em Copas, 90 minutos medíocres serem redimidos nas prorrogaçõ­es. O sonho do hexa acabou na sexta com aquele jogo sofrível. Sábado, o repórter, desiludido, saía do cinema quando começava, na TV do bar, a prorrogaçã­o de Rússia e Croácia. O brasileiro naturaliza­do russo Fernandes faz o que todos queriam ter visto Neymar fazer no dia anterior – gol! A decisão vai para os pênaltis. Fernandes erra.

“É brasileiro, pô!”, complexo de vira-lata, o comentário no bar. Subasic, o goleiro da Croácia, agiganta-se. Pode ser uma equivocada impressão de cinéfilo. John Ford, a grandeza dos derrotados. A Copa tem sido pródiga nesses momentos privilegia­dos. O gol de Mina, aos 48, levando a decisão de Colômbia e Inglaterra para os pênaltis. O desalento de James, queridinho de Anitta, na tribuna.

A Dinamarca pode ter sido eliminada, mas o pênalti que Schmeichel salvou, visto pelo olhar de seu pai, ex-goleiro, valeria um título. O goleiro da Croácia, Subasic, merece estátua por haver defendido todas aquelas bolas. E Alisson, enquanto segurou, mudou o conhecido refrão – vai que é tua, Alisson! Por um momento, chegou a ser o menos vazado. O torcedor pode até ter perdido a dimensão superlativ­a desses lances. Mas houve um desenho estético em campo. Pegue aquele passe de Willian, a bola que Neymar deslizou para enfiar no gol de Ochoa. O lance, captado pelas câmeras e decupado nos estúdios, privilegio­u o que diz do cinema Nicholas Ray. Cinema é a melodia do olhar. Mas o olhar, ali, não era melódico. Era o olhar incrédulo, aterrado do goleiro que parecia um paredão e via seu mundo desmoronar.

A Copa é coisa de cinema e pode ser vista nas telas. Nessa era de tantas plataforma­s, a tela de cinema não perdeu seu caráter mágico. E, se o cinema é arte, como proclamam os críticos, nada melhor que o futebol, naquela imensidão de tela, para ressaltar o caráter artístico de lances, atletas. O deslizar de “Ney”, a cabeçada de Thiago Silva, quando o sonho ainda era possível. Nosso super-herói voando sobre os rivais. O cinema possui caracterís­tica única. Graças à identifica­ção projetiva, você está no escurinho, cercado de gente – sua fruição é individual. Por isso, para vivenciar o coletivo, se você não está na Rússia, teve, em São Paulo, o Anhangabaú.

O cara ao seu lado pode ser um marmanjo, mas roía as unhas como criança indefesa. Após sufoco, o abraço coletivo. Pensei que nunca mais passaria pelo horror de 2014. Brasil e Alemanha. Havia entrado num boteco do Anhangabaú. Fui ao sanitário e, ao voltar, gol (deles). Quatro, disse. Não, já era o quinto e haveria mais. A história não se repetiu exatamente igual, mas o hexa foi protelado. As imagens não mentem – as grandiosas e as que espelharam o fracasso. Erguida no centro da capital da Rússia, uma estátua feita em bronze e com mais de sete metros de altura provoca as mais diversas reações em quem para e contempla a obra. Não deixa de ser um tanto quanto espantoso olhar a figura de um senhor com jaqueta de piloto de bombardeio, olhar fixo e mãos firmes em uma das mais conhecidas armas de guerra do mundo, o fuzil AK-47, a sua mais conhecida criação. A reportagem do Estado em Moscou parou em frente ao monumento em homenagem a Mikhail Kalashniko­v.

Kalashniko­v, que morreu em 2013, aos 94 anos, é considerad­o um dos maiores heróis de guerra da União Soviética e da Rússia. Ele começou a projetar o fuzil em 1945, em uma fábrica estatal na região leste do país.

Em 1947, chegou ao que julgou ser o ideal e a arma passou a ser produzida e distribuíd­a em escala maior em 1949, quando passou a ser usada pelas Forças Armadas Soviéticas. “O senhor Kalashniko­v não tem responsabi­lidade pelo uso de sua obra. Ele foi um gênio e mudou a história não apenas da União Soviética e da Rússia, mas também de toda a humanidade”, comentou Karol, um polonês casado com uma russa que morou dois anos no Brasil. “Eu sei o que você quer dizer, mas não quero entrar no mérito político, no simbolismo deste monumento. Ele criou a arma porque a União Soviética precisava se defender”, argumentou o rapaz.

O colombiano Carlos Martinez, que ainda estava em Moscou dois dias depois de sua seleção ter sido eliminada da Copa nos pênaltis para a Inglaterra, pensa o oposto do amigo polonês. “De jeito nenhum, não concordo com isso. O russo aí criou uma arma usada para matar milhões de pessoas. Tem sangue em suas mãos sim”, argumentou sem levar em conta o próprio escrito na estátua. “Criei uma arma para a defesa de minha terra natal”. Essa frase, de Kalashniko­v, está gravada no pedestal da estátua e reflete o pensamento do povo russo em geral em relação a obra.

Na cerimônia de inauguraçã­o da obra, o escultor Salavat Schherbako­v falou com os jornalista­s sobre o fuzil de assalto. “Esta arma é a defesa da história da Rússia. É um dos símbolos do país. Infelizmen­te, para que a vida continue, para que as adoráveis crianças cresçam, para as lindas mulheres da Rússia, é preciso haver uma arma dessas.”

O fuzil AK-47 (Avtomát Kaláshniko­va 1947, em russo, ou Kalashniko­v automática 1947) é a principal arma do arsenal das Forças Militares da Rússia há mais de 60 anos. Seu desenho está em bandeiras de vários países do continente africano – exércitos de mais de 50 países possuem o armamento. Especialis­tas estimam que a arma matou mais pessoas do que todos os tipos de outras armas somados e uma projeção dá conta de que uma a cada cinco armas de fogo do planeta seja o fuzil. Estima-se que mais de 70 milhões de unidades foram comerciali­zadas desde a sua criação.

Em vida, Kalashniko­v foi autor de célebres frases e deixou claro muitas vezes que a satisfação por ter criado a arma se misturava à dor de vê-la utilizada por criminosos e crianças, principalm­ente na África. Em uma delas, ele explicou seu sentimento. “Quando vejo na televisão Bin Laden (o terrorista Osama bin Laden, morto por fuzileiros navais dos EUA em 2011) com seu AK-47 em mãos, fico revoltado. Mas o que posso fazer? Os terrorista­s não são bobos. Também escolhem armas confiáveis.”

Criei uma arma para a defesa de minha terra natal Mikhail Kalashniko­v,

CRIADOR DO FUZIL AK-47

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EVERTON OLIVEIRA/ESTADÃO Marco. Monumento feito em bronze mostra Kalashniko­v com o fuzil

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