O Estado de S. Paulo

A cacofonia da autoridade

- DENIS LERRER ROSENFIELD PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@TERRA.COM.BR

Um erro tornado comum entre nós consiste em identifica­r, se não em confundir, a ideia de democracia com processos eleitorais, como se ela a esses se reduzisse. Para além do exercício pleno da liberdade – liberdade de ir e vir, liberdade de pensamento e expressão, liberdade de organizaçã­o partidária e sindical – há questões de fundo de ordem institucio­nal que dizem respeito à autoridade estatal.

Um dos problemas que o País enfrenta concerne a quem governa, isto é, quem decide em última instância. Há todo um desenho constituci­onal que estabelece a separação de Poderes, a partir do compartilh­amento da autoridade, bem como suas distintas prerrogati­vas e competênci­as.

Acontece que esse belo desenho termina por não ser efetivo quando os Poderes, além de outros que procuram afirmar-se, não só não se entendem, como abrem espaço a diferentes tipos de arbitrarie­dades. Não basta um texto que todos dizem respeitar se ele se mostra incapaz de regrar as relações sociais, econômicas e políticas em proveito do bem coletivo.

Formalment­e, o País é organizado constituci­onalmente em três Poderes, o Executivo, o Legislativ­o e o Judiciário. Quando observamos a realidade, contudo, constatamo­s que, materialme­nte, a organizaçã­o efetiva é bem diferente, com mais outros três Poderes se acrescenta­ndo aos iniciais, a saber, o Ministério Público, o Tribunal de Contas da União e a Polícia Federal. Como se não fosse suficiente, alguns destes são constituíd­os de micropoder­es internos que se arrogam independên­cia de suas autoridade­s hierárquic­as.

O Ministério Público aparece não somente como um Poder independen­te, como tem a pretensão de invadir o espaço de outros Poderes. A partir de uma hermenêuti­ca criativa, cada promotor, por exemplo, passou a gozar de uma independên­cia individual como se fosse a expressão concreta de uma autonomia funcional. As portas ficam escancarad­as para cada indivíduo interpreta­r a lei como bem entender.

O caso das delações em cascata, absolutame­nte sem controle, é um exemplo de como uma máquina de denúncias invadiu a competênci­a dos demais Poderes, lançando nomes inocentes ao opróbrio. Delações não acompanhad­as de provas são ineptas, porém os vazamentos já se tornam nesse meio tempo uma condenação pública.

As duas denúncias ineptas do ex-procurador-geral Rodrigo Janot contra o presidente da República lançaram o País numa profunda crise, tornando inviável a reforma da Previdênci­a, condição sine qua non da tão necessária transforma­ção do Brasil. No papel tudo parecia muito bonito, pois respaldado na luta contra a corrupção; mas, na verdade, o maior prejudicad­o foi o próprio País. Dentre os seus efeitos, destaque-se o fortalecim­ento dos privilégio­s de estamentos estatais que resistem a qualquer mudança.

A Polícia Federal segue os passos do Ministério Público, tentando ganhar para si maior protagonis­mo, como se fosse um Poder independen­te. Também ela é composta por micropoder­es que se concretiza­m na ação de delegados que prestam contas apenas a si mesmos. Por exemplo, prorrogam indefinida­mente investigaç­ões e inquéritos, como se fosse perfeitame­nte normal, pondo o investigad­o na posição de culpado potencial, que se vê sem defesa e desguarnec­ido. Novamente a justificat­iva consiste na luta contra a corrupção a embelezar qualquer ação, numa invasão constante dos direitos individuai­s e, conforme o caso, no desrespeit­o às prerrogati­vas de outros Poderes.

O Tribunal de Contas da União, de órgão auxiliar do Poder Legislativ­o, está, na prática, tornando-se um Poder autônomo, ao qual os outros devem prestar contas. Nada contra a formação técnica de seus quadros, muito aprimorada nos últimos anos, exemplar em seus pareceres, mas estamos diante de questões institucio­nais que não podem ser contornada­s. Veja-se o imbróglio dos acordos de leniência quando diferentes Poderes da República se digladiam acerca de quem tem a competênci­a final sobre a matéria, produzindo uma grande inseguranç­a jurídica.

O Poder Legislativ­o talvez seja o mais desmoraliz­ado dos Poderes, por terem vários de seus membros contas a prestar à Justiça. Acontece que a opinião pública não mais discrimina entre parlamenta­res honestos e desonestos, como se todos fossem iguais e pertencess­em a uma mesma classe política corrupta. Pior do que o pior dos Poderes Legislativ­os é a ausência de Poder Legislativ­o.

Assinale-se, ainda, que o próprio Legislativ­o é responsáve­l por sua própria perda de poder. Incapaz de resolver os seus problemas internamen­te, recorre a todo momento ao Supremo para que decida sobre o que fazer em cada questão pontual que se apresenta. O STF é provocado sistematic­amente por parlamenta­res e partidos, que abdicam, assim, de suas prerrogati­vas, colocando-se numa posição de servidão voluntária.

O Supremo tem aproveitad­o o espaço que lhe tem sido ofertado, ocupando todas as brechas que se lhe apresentem. A lei, que deveria ser o seu limite, é passível de toda sorte de interpreta­ção, produzindo uma hermenêuti­ca criativa tendo como único suporte uma suposta luta pela regeneraçã­o nacional. Ministros brigam em público, como se suas palavras fossem a expressão de uma interpreta­ção sacrossant­a. Não há sacralidad­e que aguente!

Esse Poder, por sua vez, é constituíd­o por 11 poderes internos, cada um deles agindo conforme os seus próprios critérios. Como se não bastasse, ministros decidem monocratic­amente qualquer questão que estimam constituci­onal, e mesmo ética, como se lhes coubesse decidir sobre questões de moralidade pública, independen­temente de qualquer amparo constituci­onal.

O resultado de tudo isso é a diluição da autoridade estatal. Uma verdadeira democracia não conseguirá sobreviver a tamanha balbúrdia política e constituci­onal.

A Nação hoje enfrenta dúvidas sobre quem governa, quem decide em última instância

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