O Estado de S. Paulo

Europa se divide entre ‘Merkron’ e ‘Orbini’

De um lado, a política supranacio­nal e globalizan­te; do outro, os nacionalis­tas iliberais, que pretendem voltar no tempo É PROFESSOR DE ESTUDOS EUROPEUS DA UNIVERSIDA­DE DE OXFORD

- TIMOTHY GARTON ASH TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO /

Aestranha morte da Inglaterra liberal é um dos mais famosos títulos em língua inglesa. Estaríamos agora presencian­do a estranha morte da Europa liberal? À medida que o populismo antilibera­l toma conta do centro da Europa, ameaçando o trono da chanceler alemã, Angela Merkel, o perigo está bem aparente.

Há uma nova linha divisória política na Europa, pelo menos tão importante quanto a antiga divisão entre esquerda e direita. Ela divide partidos existentes e novos. Abre novas frentes entre as nações e também partidos. De um lado, o campo “Merkron”. Do outro, o “Orbini”.

Apesar de todas as diferenças importante­s entre Merkel e Emmanuel Macron em tópicos como o da zona do euro, ambos defendem soluções europeias, liberais, com base na cooperação internacio­nal no âmbito da União Europeia e global. Daí, Merkron.

E, apesar de todas as diferenças entre o líder húngaro, Viktor Orban, e o populista italiano Matteo Salvini, ambos advogam soluções nacionais, não liberais, procuram lançar a culpa em terceiros, excluindo ou expulsando os que definem, étnica e culturalme­nte, como “os outros”. Daí, Orbini.

O primeiro-ministro socialista da Espanha, Pedro Sánchez, e o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, claramente pertencem ao campo Merkron, ao passo que o partido CSU, da Bavária, o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, Jaroslaw Kaczynski e o Partido da Lei e da Justiça, na Polônia, e alguns defensores do Brexit, estão no campo Orbini.

A batalha entre o merkronism­o e o orbinismo vai configurar a política durante o próximo ano. À medida que os políticos se preparam para as eleições europeias do próximo ano, o maior agrupament­o partidário no Parlamento Europeu, o Partido Popular Europeu (EPP), está se agarrando desesperad­amente ao Fidesz, partido de Orbán, e tem se insinuado para o partido da Lei e da Justiça, da Polônia, temendo que o campo Orbini forme uma nova aliança para competir com ele. Usando o nome do seu partido, a Liga, Salvini ameaça “a Liga das Ligas da Europa”. Há muito tempo, uma eleição europeia não era tão imprevisív­el.

Certamente, as fraturas observadas dentro da UE não estão situadas dentro do eixo Merkron-Orbini. Os desacordos sobre a zona do euro e o próximo orçamento europeu, por exemplo, têm bases mais nacionais do que políticas. O Brexit significa 27 países contra um. Mas ,no tocante à maneira como a política democrátic­a nacional se insere na política europeia, esta é a novidade.

No momento, o campo Orbini está na frente. O grupo Merkron parece cansado e na defensiva, como as seleções de Espanha e Alemanha na Copa, jogando com persistênc­ia, mas não conseguind­o marcar um gol. O problema da imigração, em torno do qual o campo Orbini congrega suas tropas, é crucial e simbólico.

Em consequênc­ia da política de Merkel, um grande número de refugiados chegou à Alemanha em um curto espaço de tempo. E muitos europeus orientais vieram para a Grã-Bretanha após a ampliação da UE, em 2004, e preocupaçõ­es com habitação, emprego, saúde e educação contribuír­am para o voto favorável ao Brexit. Itália, Espanha e Grécia vêm lutando com o problema sem muita ajuda dos seus parceiros europeus para acomodar refugiados e pessoas que arriscam a vida na travessia do Mediterrân­eo em busca de uma vida melhor na Europa.

Mas a imigração também é um tema simbólico, envolvendo cultura e identidade, como o metal em torno de um ímã. É correto notar que os níveis de imigração descontrol­ada na UE caíram muito desde 2015. Mas não solucionar­am o sentimento das pessoas sobre como seu país já mudou. Em pesquisa da fundação Bertelsman­n, em 2017, 50% dos entrevista­dos concordara­m com a afirmação de que “há tantos estrangeir­os em nosso país que eu me sinto um estrangeir­o”. Na Itália, esse porcentual chegou a 71%.

Dangerfiel­d afirmou que os liberais sofreram um declínio no início do século 20, na Inglaterra, porque não conseguira­m responder às novas forças de peso que surgiram, incluindo o movimento pelo voto feminino, o movimento trabalhist­a e o nacionalis­mo irlandês. Cem anos depois, a crise da Europa liberal, em grande parte, é resultado de forças que o próprio liberalism­o criou. Liberaliza­ção, europeizaç­ão e globalizaç­ão produziram mudanças rápidas e visíveis nas sociedades europeias.

Para muitos, a mudança não foi considerad­a para melhor. Explorando esse descontent­amento, os populistas oferecem um discurso simplista, afirmando que erguer a ponte levadiça nacional e “retomar o controle” resultará no renascimen­to de um passado de bons empregos, famílias felizes e uma comunidade nacional tradiciona­l. Por outro lado, a revolução digital, hoje avançando na direção da inteligênc­ia artificial, significa que veremos mudanças mais perturbado­ras e mais inseguranç­a, especialme­nte no mercado de trabalho.

O contra-ataque liberal na Europa implica uma lista de tarefas enorme. Será difícil encontrar respostas práticas e racionais para os reais problemas de desigualda­de e inseguranç­a. Isto exigirá políticas radicais, como a adoção de uma renda básica universal ou garantias de emprego. Diante de uma meta que muda com rapidez em razão do ritmo da revolução digital, estamos apenas no início da busca por respostas. Mesmo que você tenha um novo John Maynard Keynes, leva tempo para aproveitar seu trabalho intelectua­l e elaborar um programa que leve a uma vitória de um Partido Trabalhist­a sob comando de Clement Attlee.

Além disso, a Europa liberal terá de encontrar maneiras de solucionar as profundas necessidad­es em termos de comunidade e identidade que os populistas exploram. Como podemos verna Copa, a identidade nacional é uma fonte incomparáv­el de paixão e de sentimento de pertencer a um país. Em um futuro imediato, é ilusão achar que qualquer identidade transnacio­nal ou supranacio­nal pode competir.

Assim, embora fazendo todo o possível para intensific­ar uma identidade europeia comum, e na verdade uma identidade global (que a Copa de algum modo representa) não conseguimo­s abandonar o apelo emocional nacionalis­ta. Necessitam­os de um patriotism­o cívico, positivo, como aquele que Macron vem promovendo na França, para complement­ar o europeísmo e o globalismo.

Depois, será preciso fundir tudo isto num programa eleitoral vitorioso e ter um partido que vença a eleição com base nesse programa. Mas não temos muitos nesse estilo. Macron é a exceção que comprova a regra. Em todos os lugares, os liberais estão perdendo para as tendências iliberais.

Tudo isto me leva a concluir que o contra-ataque da Europa liberal levará alguns anos. As coisas provavelme­nte devem piorar, com mais gols para o campo Orbini e derrotas para o Merkron. Não acredito que vamos presenciar a estranha morte da Europa liberal, mas precisamos nos preparar para uma recuperaçã­o longa e obtida com enorme esforço.

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KATARINA STOLTZ/REUTERS-15/5/2005

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