Um cinema popular
Caixa de DVDs mostra um Nelson Pereira preocupado em dialogar com o público
Sai a terceira caixa de DVDs da Coleção Nelson Pereira dos Santos (Regina Filmes/BF, R$ 169,90), a primeira após a morte do diretor, ocorrida dia 21 de abril. Cobre os anos de 1977 a 1993 e contém cinco longas-metragens, além de extras: Tenda dos Milagres (1977), Na Estrada da Vida (1981), Memórias do Cárcere (1983), Jubiabá (1986) e A Terceira Margem do Rio (1993).
Há uma particularidade histórica aí: os quatro primeiros filmes foram realizados ainda na época da Embrafilme e apenas o quinto foi produzido após o desmanche da indústria cinematográfica nacional promovido durante o governo de Fernando Collor.
São também filmes já distantes da primeira vaga do Cinema Novo, que teve em Nelson seu precursor e um dos seus autores mais poderosos (basta lembrar da obra-prima Vidas Secas). Agora são títulos menos radicais do ponto de vista estético e mais afinados com uma temática derivada do chamado “nacional-popular”. Nelson Pereira, de certa forma, representa o cinema brasileiro em sua tentativa de diálogo maior com o público, o que não ocorreu na época do Cinema Novo.
Nesta fase, Nelson dá continuidade a seu diálogo de toda uma vida com a literatura brasileira. Dos cinco filmes, apenas Na Estrada da Vida não é adaptação de obra literária. Tenda dos Milagres e Jubiabá têm origem em romances de Jorge Amado. Memórias do Cárcere no relato de Graciliano Ramos sobre sua prisão durante o Estado Novo. E A Terceira Margem do Rio funde vários contos de Guimarães Rosa. Um baiano, um alagoano, um mineiro, e Nelson, um carioca nascido em São Paulo, dialoga com eles e monta um painel da nossa problemática e exuberante nacionalidade.
Dos cinco, a obra-prima é Memórias do Cárcere, produzido e lançado na aurora da redemocratização brasileira após duas décadas de ditadura. O filme acompanha o martírio do protagonista no calabouço de Vargas e sua posterior libertação, em magnífica interpretação de Carlos Vereza. É um filme que mantém um olho no passado e outro no presente. Fala de uma ditadura que ficou nos manuais da História para comentar outra que, na época do filme, caminhava para o seu fim.
Memórias é sempre atual, dada a nossa frágil tradição institucional, sempre pronta a rupturas. E fala na trabalhosa construção da democracia, com frequência interrompida e sujeita a retrocessos, como é conhecimento de todos. Neste Brasil contemporâneo e sempre problemático, ainda é impossível não se emocionar com a libertação do escritor de sua prisão na Ilha Grande ao som da Fantasia sobre o Hino Nacional Brasileiro,
de Gottschalk.
Das adaptações de Jorge Amado, Tenda dos Milagres é mais bem-sucedida que Jubiabá. A primeira usa a metalinguagem ao fazer de Fausto Pena (Hugo Carvana) o cineasta que tenta realizar um filme sobre o filósofo popular Pedro Arcanjo, bedel da Universidade da Bahia no início do século 20. Em Jubiabá,
fala da questão racial, no romance problemático entre o homem negro Balduíno e uma loira aristocrática, Lindinalva.
Na Estrada da Vida é o diálogo de Nelson com a música sertaneja como uma das manifestações populares mais fortes. Milionário e José Rico interpretam a si mesmos como os dois pintores de paredes que enfrentam a selva de São Paulo e tentam sobreviver de sua arte.
A Terceira Margem do Rio é um ponto fora da curva uma vez que alinhava alguns contos do livro Outras Estórias, como Os Irmãos Dagobé, A Menina de Lá, Fatalidade e o próprio relato que dá nome ao longa-metragem. Este conto – A Terceira Margem do Rio – é considerado uma das obras-primas de Guimarães Rosa e também um dos seus relatos mais enigmáticos. Nele, vê-se o homem que tudo abandonou para cruzar incessantemente um rio a bordo de sua canoa, sem colocar os pés nas margens.
Simbólico, metafísico, aberto a múltiplas interpretações, esse texto serve de ponto de união a outros relatos que nem sempre se casam com harmonia. O filme teve, no entanto, papel fundamental de assinalar uma retomada de um cinema extinto que ressurgia pela mão de um dos seus realizadores mais importantes. Foi filmado em parte na região de Paracatu, em Minas Gerais.