O Estado de S. Paulo

Duas mulheres, um rosto: o jogo de máscaras do autor

‘Persona’ surgiu num momento especial para afirmar o extraordin­ário domínio do cineasta sobre a linguagem

- Luiz Carlos Merten

Bergman é tão grande que parece reducionis­mo ter de escolher um filme, mesmo que seja o preferido, do coração. Todo mundo tem o filme de que mais gosta, ou não? O problema é quando o artista é tão grande como Bergman. Morangos Silvestres? Gritos e Sussurros? Persona!

A palavra italiana vem do latim e designa as máscaras usadas pelos artistas durante as representa­ções. Para os distribuid­ores brasileiro­s, Máscara, um título possível, deve ter soado muito anódino. Persona virou Quando Duas Mulheres Pecam, mesmo que, apesar do erotismo, as mulheres não pequem de verdade. Liv Ullman e Bibi Andersson não repetem Ingrid Thulin e Gunnel Lindblom em O Silêncio, quando a degradação humana permitiu a Bergman questionar­se, visceralme­nte, sobre o silêncio de Deus, um dos temas que sempre o atormentar­am. Os outros foram a fome e o sexo. Fome e fome, comer e comer.

Persona – esqueça as pecadoras – surgiu em 1966, após um hiato de quase três anos do autor. Bergman vinha filmando regularmen­te, e continuou depois, mas aí, nesse momento, houve uma quebra que mudou tudo. Ele ficou doente, e teve tempo de se repensar. A psicanális­e, com certeza, ajudou-o a redimensio­nar sua vida, o cinema. Ele trocou de mulher, o que já fizera muitas vezes, mas a relação com Liv Ullman foi muito particular. No documentár­io de Jane Magnusson, Bergman – 100 Anos, ela chora. “Ele foi sempre meu melhor amigo.” Quantos casais podem dizer isso? E, claro, houve o fotógrafo. Com sua luz, Sven Nykvist mudou muito o estilo de Bergman filmar. Os closeups adquiriram outro significad­o, a câmera foi ficando cada vez mais próxima do rosto humano, como se quisesse desvendá-lo, em busca da ‘alma’.

Na entrevista da capa, Manuelle Blanc, diretora do documentár­io Ingmar Bergman – Por Trás da Máscara, revela por que escolheu Persona como objeto de estudo. Ela viu e reviu o filme incontávei­s vezes. Persona integra os pacotes de Bergman que a Versátil estará recolocand­o nas lojas, nesta semana, para comemorar o centenário do grande diretor, no dia 14. O filme também integra a programaçã­o Ingmar Bergman – Lado B, com obras mais secretas do autor, que começa dia 19 no Belas Artes. No começo e no fim, o próprio carvão que alimenta(va) os projetores, na era da película, ganha espaço na tela. O filme queima, o menino levanta-se na morgue. Sonho ou pesadelo? Duas mulheres em simbiose, um só rosto. Paulo Francis adorava provocar. Dizia que Jean-Luc Godard, com sua metalingua­gem, provava só haver lido orelhas de livros. Bergman é que os lera todos.

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SVENSK FILMINDUST­RI ‘Persona’. Bibi Andersson e Liv Ullmann: Alma e Elisabet

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