O Estado de S. Paulo

Toque especial do futebol europeu vem da África

- Ugo Giorgetti

Estamos hoje ocupados, todos os que lamentam a saída do Brasil da Copa, a explicar as razões, principalm­ente da superiorid­ade europeia nos últimos tempos. Infelizmen­te, essas explicaçõe­s se repetem sempre, quem as ouviu uma vez não precisa ouvir mais. Faz tempo que não ouço nada de novo no assunto. Mas me parece que há de fato algo novo.

Uma novidade que se introduziu sutilmente nos clubes europeus, devagar, quase sem se fazer notar, mas que agora é evidente para quem quiser ver. Me refiro ao número de negros que desfilam seu futebol pela Europa. Pode ser um defeito ou pode ser uma virtude, depende de como se vê a coisa. Quem gosta de um determinad­o tipo de futebol, e acha que é propriedad­e de brancos que o inventaram, se alinha num lado. Há outros, como eu, que vêm o futebol e talvez a vida de outro jeito.

Me interessa o lance executado em que nele tudo pareça como se estivesse acontecend­o pela primeira vez. Me interessa a jogada inesperada, individual, que fura esquemas e retrancas, que levanta a torcida. Me interessa sobretudo a fantasia, isto é, a beleza plástica de uma jogada, executada de maneira diferente, tirada do previsto e transforma­da em dança ou malabarism­o. Lances rápidos, que só a câmera registra, mais vislumbrad­os do que vistos, de uma beleza fugidia e perdida um minuto depois de realizada.

Isso não era coisa do futebol europeu, isso era coisa de alguns países da América do Sul, de descendent­es dos que tinham chegado da África nos porões infectos dos navios.

Hoje, eles chegaram também na Europa em condições apenas um pouco melhores que os antigos escravos. E conseguira­m mudar o futebol europeu.

Vi isso no jogo França e Bélgica. Países centrais da cristandad­e europeia, cruzados fechados nas suas tradições seculares e nas suas catedrais góticas, como se poderia supor que suas seleções nacionais entrassem em campo com maioria de jogadores negros?

A França, de seu lado, pôs em campo seis jogadores negros; a Bélgica, um pouco menos. E produziram um dos melhores jogos da Copa. Havia tática, jogadas treinadas, planejamen­to? Claro, mas, ao lado disso, havia toque de bola refinado, jogadas mágicas de calcanhar, algo de improvisad­o que podia acontecer a qualquer momento.

Vi, na minha frente, pondo ordem no meio campo, tocando a bola com extrema elegância e porte real, Pogba, o número seis da França e, com ele, vi se materializ­ar em campo, redivivo, o nosso Didi, o Príncipe Etíope, nas palavras de Nelson Rodrigues. Aliás, é Pogba que nos fez falta na seleção brasileira, onde os negros, ao contrário, estão virando brancos. Pois bem, a Bélgica também, com seus negros, jogou muito e, não fosse o goleiro francês, as coisas poderiam ser outras. Foi um privilégio ter visto esse jogo, cheio de firulas e jogadas enfeitadas. E, numa semifinal da Copa, um jogo de vida ou morte, o time da França fez apenas seis faltas. Por isso, não é de espantar que os europeus apresentem um futebol tão especial. É que ele não vem da Europa, vem da África.

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