O Estado de S. Paulo

Aqueciment­o global, ebulição local

- JOSÉ SERRA SENADOR (PSDB-SP)

Em 1989, com o artigo O fim da História, Francis Fukuyama ganhou notoriedad­e e entrou para a imensa galeria dos futurólogo­s equivocado­s. Extinto o socialismo real na Rússia e na Europa do leste, o autor acreditava que as democracia­s liberais se tornariam a forma inexorável de governo no mundo. Tudo seria uma questão de tempo. Passados 30 anos, sabemos que a profecia falhou.

Fukuyama, entretanto, não era um sonhador solitário. Na verdade, os chamados neoconserv­adores nos Estados Unidos foram influentes nos três governos Bush. Os Estados Unidos teriam a “missão histórica” de levar a democracia a todos os cantos do mundo. Porém essa missão “civilizató­ria”, agora se sabe, também provocou fragmentaç­ão e abriu espaço para novos radicalism­os. Sem que se tenha tornado uma idílica aldeia global, parte do mundo é varrido pela força centrífuga do nacionalis­mo ressurgent­e, que fragiliza alianças – como a União Europeia –, desaloja governos e partidos tradiciona­is e ameaça tornar o populismo uma força hegemônica.

Independen­temente do ativo papel norte-americano, outras forças tectônicas da geopolític­a atuaram para moldar um mundo que não se ajusta às previsões de Fukuyama, uma delas o espetacula­r cresciment­o chinês, resultante da ação de um Estado gerencial, burocrátic­o e distante do modelo ocidental.

De fato, o cresciment­o chinês – a partir das reformas pragmática­s de Deng Xiaoping – é um elemento fundamenta­l da nova ordem que se está plasmando. Nesses 40 anos a China cresceu a 10% ao ano e 800 milhões de pessoas escaparam da linha de pobreza. O que começou como um processo de desenvolvi­mento baseado em exportaçõe­s têxteis de baixo valor alçou a China à segunda posição na economia mundial. Um dado impression­ante sobre o investimen­to: a China tem hoje 25 mil km de ferrovias de alta velocidade.

O vertiginos­o cresciment­o chinês vem reduzindo o preço dos bens industrial­izados, o que beneficia o consumidor ocidental, mas leva esse mesmo consumidor a enfrentar um mercado de trabalho que se encolhe e se deteriora. O governo Trump e sua guerra comercial são em boa parte consequênc­ia desse deslocamen­to.

O avanço da tecnologia da informação é outra força tectônica que vai reconfigur­ando o mundo. A intensific­ação da automação compromete ainda mais o emprego – agora também o de alta qualificaç­ão. A população da Europa Ocidental parece acordar para um pesadelo: seus países não são mais o misto de opulência e igualitari­smo de algumas décadas atrás. O desemprego elevado pressiona as finanças públicas. Os sonhos de consumo e de uma seguridade social sólida e eterna são substituíd­os por políticas de austeridad­e que, por sua vez, parecem incapazes de garantir nova fase de cresciment­o equitativo.

A mesma tecnologia de informação que reconfigur­a e reduz o mercado de trabalho amplia o poder das redes sociais como fator político. Diminui a influência da imprensa tradiciona­l e o espaço para o diálogo ponderado. Cresce a algaravia dos discursos inflamados, extremos e, em geral, baseados em dados e informaçõe­s falsos ou distorcido­s, as chamadas fake news.

Finalmente, o fluxo migratório – impulsiona­do também pela fragmentaç­ão de vários Estados nacionais – começa a se tornar tema decisivo nas eleições dos países desenvolvi­dos. O que antes provocou o surgimento de movimentos xenófobos minoritári­os alçou esses mesmos movimentos à condição de protagonis­tas. O avanço do populismo nacionalis­ta na Itália levou à formação de um novo governo que não só cresce em popularida­de com suas primeiras medidas anti-imigração como parece estar enfraquece­ndo a coalização de governo alemã. Angela Merkel, conservado­ra e compassiva, é pressionad­a a endurecer o tratamento da questão migratória por seus parceiros de Gabinete, sob pena de derrocada de seu governo.

No Brasil, por certo, todos esses movimentos e rupturas repercutem e nos influencia­m. Temos desemprego estrutural e a mesma irresignaç­ão com a política tradiciona­l nos atinge. As redes sociais amplificam o justo descontent­amento. Como nos países centrais, a política tradiciona­l não tem sido capaz de dar respostas e confiança à população. É um ambiente carregado, em que sinais de anomia pipocam aqui e ali.

Vivemos um tempo de urgências. Em várias frentes. Temos de constituir rapidament­e uma maioria política capaz de enfrentar as três graves ameaças que nos rondam: o desequilíb­rio fiscal – basicament­e previdenci­ário –, a criminalid­ade e o desemprego estrutural.

Esses problemas se entrelaçam e se reforçam. O desequilíb­rio fiscal exige uma crescente canga tributária – não é erro de ortografia – sobre as empresas que não gozam de privilégio­s e poder de mercado; a canga tributária não reverte em serviços eficientes para a população, inibe o investimen­to e impede nossos jovens de entrar no mercado de trabalho; o desemprego estrutural força ainda mais os déficits públicos, que, por sua vez, pressionam os juros e, por esse canal, compromete­m o investimen­to. A ineficiênc­ia do Estado facilita a expansão do crime organizado – e do desorganiz­ado. A população assusta-se, torna-se mais cética sobre as instituiçõ­es democrátic­as e abre campo para o radicalism­o. O potencial desestabil­izador do radicalism­o piora as expectativ­as e, por decorrênci­a, também a situação fiscal.

Na esfera política, o sistema proporcion­al é um zumbi que arrasta consigo o presidenci­alismo de coalizão. Temos de adotar o voto distrital misto para dar novo fôlego à representa­tividade democrátic­a e insuflar vida na política, mesmo que seja a partir das eleições de 2022.

Mas não podemos deternos nessa mudança. É hora de as lideranças enfrentare­m a nossa questão fiscal, sob pena de o aqueciment­o global se transforma­r aqui em caldeirão fervente.

Urge enfrentar o desequilíb­rio fiscal, a criminalid­ade e o desemprego estrutural

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