O Estado de S. Paulo

Ainda dá para virar o jogo

- SÉRGIO FAUSTO

Para o Brasil a Copa acabou antes do que gostaríamo­s. Com ela se foi o que tem sido raro nos últimos tempos: a alegria compartilh­ada de se sentir brasileiro(a). Partimos para a campanha eleitoral com o País ainda em crise e sem clareza sobre se saberemos superá-la no próximo mandato presidenci­al.

Teremos de juntar os cacos. Se, de um lado, não faz sentido repor a estrutura de poder que se desmontou, tampouco têm cabimento as fantasias de quem aposta que a única solução é fazer tábula rasa do passado e renovar “tudo isso que está aí”. É a típica resposta simples para problemas complexos e, como de hábito, está errada. Repetida por ignorância ou má-fé, só serve para levar água ao moinho de pseudos soluções salvacioni­stas e autoritári­as.

Os últimos 30 anos, o mais longo período da História brasileira vivido sob um regime plenamente democrátic­o, não justificam a opinião pejorativa sobre a política em geral e sobre todos os políticos que hoje prevalece na sociedade. Sob a letra e o espírito da Constituiç­ão de 1988, o Brasil pôs fim a décadas de inflação alta, crônica e crescente, ampliou muito o acesso aos serviços públicos de educação e saúde, reduziu a pobreza, começou a diminuir a desigualda­de, reforçou os mecanismos de controle do Estado pela sociedade e de combate à corrupção nos setores público e privado, consolidou um regime de liberdades como nunca antes na História deste país.

Esses avanços não se deram por decreto. Fizeram-se pela arte e pelo ofício da política democrátic­a. São produto de um socialment­e amplo e pluriparti­dário conjunto de atores cujas ações, nem sempre coordenada­s em torno de uma clara e nítida agenda de reformas, jamais isentas de disputas da alta e da pequena política, permitiram respostas ao objetivo posto ao final do regime autoritári­o: como enraizar a democracia e completar o desenvolvi­mento da cidadania no Brasil. Objetivo que a Constituiç­ão de 1988 soube expressar, embora nem sempre oferecendo os meios mais eficazes para alcançá-lo. Daí terem sido necessária­s tantas emendas constituci­onais e leis complement­ares, feitas sem ruptura da legalidade, fato raro na História brasileira.

Afirmar que o balanço dos últimos 30 anos é positivo não é igual a fazer o elogio “de tudo isso que está aí”. A verdade é que a manutenção do status quo tornará o Brasil fiscalment­e insolvente e politicame­nte ingovernáv­el no médio prazo. As condições políticas e fiscais da governabil­idade democrátic­a estão muito próximas do seu ponto de exaustão. Deteriorar­am-se à medida que o presidenci­alismo de coalizão dava lugar ao de cooptação e a responsabi­lidade fiscal passou a sofrer ataques constantes de quem por ela mais deveria zelar, o governo nacional, então sob o comando do PT. Deterioraç­ão que seria aguda em qualquer hipótese e se tornou dramática com as revelações decorrente­s da Lava Jato e congêneres.

Chegou a hora de refazer o molde em que foi confeccion­ado o pacto constituci­onal de 1988. Devem ser eliminados todos os privilégio­s corporativ­os assegurado­s na Constituiç­ão, transferid­a para legislação infraconst­itucional a maioria – se não todos – dos dispositiv­os referentes à tributação e aos gastos públicos, bem como aos sistemas eleitoral e partidário. Mantidos, porém, as garantias das liberdades fundamenta­is, os mecanismos de defesa dos interesses difusos da sociedade e os direitos sociais básicos.

A desconstit­ucionaliza­ção de regras fiscais, tributária­s e eleitoral-partidária­s as tornará sujeitas a mudanças por iniciativa­s infraconst­itucionais, que requerem maiorias menores do que o voto de três quintos dos deputados e senadores. Enfrentará resistênci­as conservado­ras menos óbvias, mas não menos importante­s do que a eliminação de privilégio­s.

Mudança desse tamanho não é tarefa política trivial. Também não é simples o desafio de construir maiorias políticas capazes de produzir bons resultados uma vez desconstit­ucionaliza­das as regras acima referidas. Por bons resultados entendo mudanças que permitam maiores e mais sustentáve­is avanços na realização do objetivo de dotar o Brasil de uma democracia mais representa­tiva, um Estado mais eficaz e responsáve­l, uma economia capaz de crescer mais, em bases ambientalm­ente sustentáve­is, e uma sociedade mais justa.

Belas palavras, mas como chegar lá? Ou melhor, como caminhar nessa direção? Precisarem­os de novo de um socialment­e amplo e pluriparti­dário conjunto de forças que se junte em torno de um acordo mínimo, mas substantiv­o, em favor de mudanças indispensá­veis para que o País retome as rédeas do seu destino. De imediato não é necessária concordânc­ia em torno de um amplo programa de governo. Basta convergênc­ia no essencial: reforma da Previdênci­a e lipoaspira­ção cirúrgica da Constituiç­ão.

O essencial divide-se em duas etapas: na primeira, evitar que as forças de centro reformista­s fiquem sem uma opção razoável no segundo turno; na seguinte, compor uma maioria política capaz de transforma­r a agenda mínima num programa de governo ou, na hipótese de derrota, organizar uma oposição eficaz e programáti­ca ao presidente eleito tornando viável um polo alternativ­o de poder e uma referência clara para a sociedade.

Estamos diante de condições adversas: dispersão políticoel­eitoral das forças do centro reformista, escassez de lideranças inconteste­s, estigmatiz­ação da política democrátic­a dos últimos 30 anos, impulsos renovadore­s positivos, mas não raro ingênuos e/ou sectários, sem falar nas tentações populistas e autoritári­as.

Contudo, ao contrário da Copa, a eleição para o Brasil ainda não acabou. Há ainda muito jogo a ser jogado. Pesquisa recente da XP Investimen­tos mostra que 49% dos eleitores decidiram seu voto em 2014 depois de iniciada a campanha eleitoral. Os adversário­s do centro reformista abriram vantagem nas preliminar­es da partida principal. Mas inda há tempo de virar o jogo.

Ao contrário da Copa, há muito a ser jogado pelo Brasil no campo eleitoral

SUPERINTEN­DENTE EXECUTIVO DA FUNDAÇÃO FHC, COLABORADO­R DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP

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