O Estado de S. Paulo

Retrato da família russa

Moradores têm vida simples em habitações construída­s durante o regime socialista

- Gonçalo Junior

O apartament­o de Daria Kornilova fica no prédio 1 da rua Bolshaya Filekovska­ya, perto do centro de Moscou. Ele foi construído nos anos 1960, tem tijolos aparentes e porta pesada de ferro. O elevador desce rangendo devagar. Como em todas as casas russas, é preciso tirar os sapatos na porta. Daria concordou em mostrar onde e como mora ao Estado, coisa rara aqui. “Os russos só convidam amigos. Mas se você se abre para ter informaçõe­s, tem mais chance de aprender.”

Como acontece com a grande maioria da classe média de Moscou, a casa não tem o padrão Fifa. Cozinha pequena, duas salas e dois quartos. O orçamento apertado vai empurrando as reformas sempre para o ano seguinte. Daria acha que elas já passaram da hora de acontecer.

A geladeira, com uns cinco ou seis anos de uso, traz alguns ímãs que mostram as viagens da família: Egito, Rio de Janeiro e as ex-repúblicas soviéticas.

Na pia com água quente e fria, outra de suas lembranças preferidas como turista: uma caneca com o desenho do calçadão de Copacabana. Foi por causa dessa viagem que ela aprendeu português. No fogão branco, um pouco enferrujad­o, frango e arroz. Ela se apressa em dizer que foi o marido, Konstantin, que deixou tudo pronto, pois ela não é muito de cozinhar.

Tudo parece gostoso.

Daria ganha R$ 1.800 como jornalista e tradutora em um site importante da Rússia. Decidiu trabalhar com um salário menor para ter horários flexíveis e poder ficar com a família e estudar. Disse que já chegou a ganhar 70 mil rublos (R$ 4.300) quando trabalhava na área administra­tiva de uma empresa.

São duas filhas: a mais velha é Katya; a mais nova, Lada – como o carro. Seu marido é advogado e tem renda média de R$ 3 mil. A casa é própria, mas eles têm despesas da ordem de R$ 600 por mês com água, luz, internet e gás. Saúde e educação são gratuitos. Não gastam com

TV por assinatura, pois não veem TV. Preferem internet.

O prédio é bem localizado, distante cinco minutos do metrô Bagrationo­vskaya e em frente ao Parque Fili, um dos principais centros de lazer da cidade. Dá para passear de barco no rio, caminhar, andar de bicicleta ou de patins, assistir aos filmes nas noites de cinema e acompanhar concertos ao ar livre. Esse é o lazer da família de Daria.

Na garagem, dois carros. O mais novo é um Toyota branco 2001, que sofreu uma batida na traseira. Outro conserto que vai sendo adiado. Daria acha que o apartament­o de 61 metros quadrados é grande, mas reclama que não é muito confortáve­l. Eles foram projetados ainda na época do socialismo para que acomodasse­m duas ou três famílias. Isso mesmo. Várias famílias dividiam o mesmo espaço em nome do conceito de coletivism­o soviético. Mas a ideia foi perdeu força com a morte de Stalin e acabou nos anos 1960.

Katya, a filha mais velha, aproveitou o espaço à sua maneira. Fez uma divisória dentro da sala grande. Privacidad­e. “Gosto de quartos dentro dos quartos”, justifica a menina de 17 anos.

Seus desenhos representa­m grande parte da decoração do local. Ela aprendeu a desenhar na Escola de Artes e agora quer aprender animação. Em agosto, fará um exame no Theatrical Art Technical College. De certa forma, levou adiante o talento da mãe, que gostava de desenhar e criar objetos com peles de animais na adolescênc­ia. Daria conta que a filha não tem tudo o que as amigas têm, mas Katya nunca reclama e entende.

Não deu tempo de ficar para o frango com arroz, apesar do convite. A próxima tarefa era entrevista coletiva da Croácia. No dia seguinte, na hora de agradecer a hospitalid­ade e o carinho, a pergunta mais delicada do encontro. Daria acha difícil a questão. “Acho que sou feliz. As pessoas queridas estão perto de mim e saudáveis. Tenho filhos e tenho saúde. Minha consciênci­a é clara. Nem sempre estou satisfeita com o que percebo no plano social, mas isso depende de mim.”

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FOTOS EVERTON OLIVEIRA/ESTADÃO Perto do centro. Apartament­o de Daria tem duas salas e dois quartos

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