O Estado de S. Paulo

Tá russo!

Russos se dão conta da saudade que sentirão desses dias tão diferentes. E eu também...

- Glauco de Pierri ✽ ENVIADO ESPECIAL / MOSCOU REPÓRTER DO ‘ESTADÃO’

Acena até hoje não sai da minha cabeça. Era a tarde de 4 de julho de 1990 no Guarujá, litoral de São Paulo, em um dia frio e chuvoso. O bar estava vazio, mas o dono, eu e o meu pai assistíamo­s pela TV à semifinal da Copa da Itália, entre Alemanha e Inglaterra. Aos 46 anos, meu pai tirou uma semana de folga do trabalho para ir até a praia com a família nas férias escolares de meio de ano. Mas ele estava sisudo, entristeci­do. “O que foi, pai?”, perguntei. Ele me olhou, respirou fundo e, segurando o choro, respondeu. “A Copa do Mundo está acabando, filho.”

Vinte e oito anos depois, mais uma vez vivi a semifinal de uma Copa do Mundo. Mais uma vez eu e a Inglaterra, que desde aquela noite em Turim nunca mais havia conseguido ficar entre as quatro melhores seleções de um Mundial de futebol. Se daquela vez, o time dos craques Lineker e Paul Gascoigne foi embora nos pênaltis, ontem a equipe do bom goleiro Pickford e do ótimo meia Dele Alli perdeu para a Croácia de virada por 2 a 1.

Aqui em Moscou, o sentimento tem sido parecido com o do meu pai em 1990. Em qualquer lugar da cidade, parece descido um ar de tristeza, daquelas que chegam sem avisar, que deixa um nó na garganta de angústia, sem motivo aparente. “Na semana que vem todos vocês, turistas, jornalista­s, jogadores, vão embora. E o sentimento dos russos é de que eles vão continuar com a vida do jeito que era, simples, sem grandes objetivos”, explica Elnara, psicóloga nascida no Azerbaijão (um dos países que faziam parte da União Soviética), mas que tem feito trabalhos de tradução durante o Mundial.

“Os russos até esses tempos de Copa do Mundo tinham muita dificuldad­e em expressar seus sentimento­s”, conta a psicóloga. “Logo na primeira semana, com a chegada principalm­ente dos sul-americanos, a cidade se encheu de alegria. Agora leva um tempo para as pessoas voltarem para a realidade”, diz a especialis­ta.

A própria Fifa, em uma mensagem publicada em suas redes sociais, percebeu um pouco a “vibe” de todo o país e, dias atrás, publicou um texto curto, que dizia para o povo russo: “Não fique triste porque já está no fim, mas fique feliz por ter participad­o de tudo isso”.

Pode parecer besteira, mas, segundo dados de 2017 do Relatório Mundial de Felicidade, publicado pela Rede de Soluções para o Desenvolvi­mento Sustentáve­l da ONU (Organizaçã­o das Nações Unidas), a Rússia aparece na 49.ª posição. Na pesquisa, as pessoas respondem a diversas perguntas e falam sobre alguns temas. Além disso, os pesquisado­res levam em conta na elaboração do ranking uma série de variáveis, que incluem PIB per capita real, assistênci­a social, expectativ­a de vida saudável, liberdade para fazer escolhas, generosida­de da população e percepções de corrupção em todos os países.

“É engraçado, mas parece que estávamos nos sentindo mais felizes e muitos de nós está com a sensação de que essa felicidade vai ir embora com o final da Copa do Mundo”, conta Ekaterina, a simpática gerente de um restaurant­e pertinho da Praça Vermelha. “Já está uma coisa assim meio que esvaziando... nas primeiras semanas, era muita gente, agora, com menos jogos, veio esse sentimento ruim”, desabafa.

“Sinceramen­te, espero que esse sentimento de amizade perdure e mude a forma como enxergamos o mundo e a vida. Aqui na Rússia as pessoas basicament­e querem as mesmas coisas, um emprego bom, uma família, etc. Você não ouvia muita gente falando em viajar, em conhecer o mundo. Agora, sinto que todos querem expandir seus horizontes, ampliar seus círculos de amizade e sair dessas fronteiras que nós mesmos nos colocamos”, diz Elnara. Tomara que seja assim.

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CARLOS GARCIA RAWLINS/REUTERS Esvaziou. Depois de respirar a Copa, povo russo volta à realidade

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