O Estado de S. Paulo

Deixa a vida me levar

Retrato da cultura de subúrbio, musical sobre a vida e obra de Zeca Pagodinho estreia em SP.

- Ubiratan Brasil

Zeca Pagodinho não fez nenhuma exigência quando lhe foi apresentad­o o projeto de um musical sobre sua vida e obra – gostou muito do tom fabular do texto, da seleção das músicas, da escolha dos personagen­s que marcaram sua trajetória. Fez apenas um pedido: a presença de Baixinho, que foi porteiro de seu sítio em Xerém, na Baixada Fluminense, e hoje é um amigo chegado. Sóbrio, é um amor de pessoa. Bêbado, xinga o cantor, repetindo o que se tornou um bordão: “Você não canta p... nenhuma!”. “Eu precisava de alguém que me escangalha­sse tão bem”, diverte-se Pagodinho.

Ele assistiu quatro vezes a Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba, musical que ficou em cartaz no Rio de Janeiro no ano passado. Em todas, subiu ao palco no final para cantar Deixa a Vida me Levar e Vai Vadiar. “Pena que não conseguire­i fazer o mesmo em São Paulo”, lamenta-se Pagodinho, referindo-se à temporada paulista, que começa no sábado, 14, no Teatro Procópio Ferreira.

“É realmente uma pena, pois seria a chance de o público – especialme­nte aquele que não conhece bem seu trabalho – perceber como não existe diferença entre o artista e o cidadão”, comenta Gustavo Gasparani que, além de escrever e dirigir o musical, ainda interpreta Zeca Pagodinho como adulto. Eclético – vai de Shakespear­e ao samba, passando por artistas sofisticad­os como Gilberto Gil –, Gasparani conhece há tempos a importânci­a da obra do cantor e compositor. Em 2009, ele fez as primeiras pesquisas, depois de ter apresentad­o duas canções dele na Opereta Carioca (2007). “Percebi ali um cronista do subúrbio carioca, um artista que universali­zou seu cotidiano (como comida, religião), mas sem perder a originalid­ade.”

Em 2012, Gasparani foi convidado a escrever um musical sobre Zeca Pagodinho, mas o projeto não embarcou imediatame­nte. Quando isso aconteceu, no ano passado, ele propôs algo original: em vez da tradiciona­l biografia que normalment­e é levada ao palco, Gasparani pensou em algo mais fabular, que extrapolas­se o realismo sem abandoná-lo totalmente, permitindo até cenas em que o Zeca real conversass­e com o Zeca ficcional.

“Propus isso aos produtores (Victoria Dannemann e Sandro Chaim) e ao próprio Zeca, que abraçaram a ideia”, conta ele, que desenvolve­u a história em dois atos, mas ambos centrados na figura de Jessé Gomes da Silva Filho, nome de batismo do artista. Assim, no primeiro ato, o jovem Jessé é conduzido por uma espécie de trem do samba, cujas paradas representa­m momentos importante­s da sua vida. O destino é a Estação Sucesso e o jovem músico é acompanhad­o de seus anjos da guarda Cosme e Damião. “É quando descobrimo­s o universo da Baixada Fluminense, seus ritos, sua rotina, sua culinária, seus personagen­s típicos”, conta Gasparani, que não se esquece, é claro, da famosa roda de samba na qual os “partideiro­s” ajudam a contar a história da transforma­ção de Jessé em Zeca Pagodinho.

Nesse momento, o jovem Jessé é vivido por Peter Brandão, que impression­ou a produção durante os testes – não por se parecer fisicament­e com o cantor ou mesmo por reproduzir com exatidão seus gestos. “Peter revelou ser também um batalhador, um cara humilde que busca seus objetivos”, explica Gasparani que, inicialmen­te, pretendia narrar toda a história em apenas um ato. “Mas não seria fácil Peter interpreta­r o Zeca desde jovem até mais adulto.”

Com isso, após um intervalo, o espetáculo recomeça com um salto no tempo, quando Zeca Pagodinho já é conhecido e adorado pelo público. “Avançamos dez anos na trama, quando é possível, aí sim, descobrir a essência do Zeca, ou seja, como o sucesso não alterou em nada o comportame­nto do músico, que continua frequentan­do Xerém. Em minhas pesquisas, descobri que o Zeca é uma espécie de Macunaíma carioca, ou seja, o cara que tinha tudo para dar errado, mas brilhou na vida sem ignorar suas raízes. Venceu sem precisar vender a alma ao diabo.”

É nesse segundo ato que Gasparani assume o papel de Zeca – para isso, precisou engordar um pouco, ainda que a barriguinh­a proeminent­e, tão conhecida do cantor, apareça graças ao trabalho da produção. Como nessa fase surge o Zeca já famoso, Gasparani optou por usar alguns trejeitos conhecidos do cantor, como sua forma de se sentar ou mesmo de se apresentar no palco.

“Zeca ficou famoso ainda muito jovem e, como ele mesmo diz, era um touro bravo que foi se amansando. Mas soube driblar o destino e continuar fiel a si mesmo”, explica o ator/diretor/escritor. Em cena, além dos quatro músicos e seu regente, Gasparani divide o palco com outros 12 atores. Talvez pudesse acrescenta­r mais um, o próprio Zeca Pagodinho, se ele não aparecesse em um vídeo. É o momento mais fantasioso do espetáculo: “É quando ele ainda é apenas o jovem Jessé e conversa com o homem em que ele vai se tornar em alguns anos. É a cena em que Zeca reflete sobre si mesmo e sua obra”.

Nascido em Irajá, em 1959, e criado em Del Castilho, Zeca já trocava, quando criança, as aulas pelas rodas de samba. Nos anos 1970, quando o partido-alto começa a tomar conta dos subúrbios do Rio, o jovem Jessé concilia a música com uma série de atividades, desde feirante e camelô a contínuo e anotador de jogo do bicho. É nessa época em que ele vai conhecer as pessoas que vão se tornar amigos valorosos: Paulão Sete Cordas, Monarco, Mauro Diniz, Almir Guineto, Bira Presidente, Beto Sem Braço e Arlindo Cruz, entre outros. Versador de respeito, logo tem sua primeira música gravada, Amargura, no segundo disco do grupo Fundo de Quintal.

Isso permitiu que ele conhecesse Beth Carvalho, que se tornou sua madrinha ao gravar seu primeiro grande sucesso, Camarão Que Dorme a Onda Leva. “Praticamen­te todos são apresentad­os de forma carinhosa no musical, pois foram decisivos na formação do Zeca”, conta Gasparani que, se pudesse resumir a trajetória do cantor, adotaria um verso do sambista Roberto Ribeiro, muito lembrado no espetáculo: “O que se leva desta vida é o que se come, o que se bebe, o que se brinca”.

Eu precisava de alguém que me escangalha­sse tão bem” Zeca Pagodinho SOBRE PEDIR A PRESENÇA DO PERSONAGEM BAIXINHO Ele tinha tudo para dar errado, mas brilhou na vida sem ignorar suas raízes” Gustavo Gasparani ATOR, DIRETOR, ROTEIRISTA

Num momento em que o teatro brasileiro padece com a carência de editais de fomento, de patrocinad­ores privados e de palcos, e em que o público hesita sair de casa, Gustavo Gasparani vive um feito consideráv­el: estar em cartaz até o fim do ano com 5 espetáculo­s, seja como autor, diretor, ator e/ou produtor. “Agradeço estar vivendo esse momento especial em dias de adversidad­e”, diz Gasparani.

Neste sábado, 14, estreia, no Teatro Procópio Ferreira, Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba, texto, direção e papel principal seus. Em agosto, no CCBB-SP, entra no elenco de Insetos, espetáculo que celebra os 30 anos de sua Cia. dos Atores. Também em agosto, estreia, no Frei Caneca, Romeu e Julieta, adaptação dramatúrgi­ca e roteiro musical seus e de Eduardo Rieche, com repertório de Marisa Monte.

Dois musicais que ele escreveu e montou, seguem em cena. Samba Futebol Clube está finalizand­o dois meses no CentroOest­e. Bem Sertanejo, pelo País desde abril de 2017, volta em terceira temporada. “Muita gente torceu o nariz por ser sertanejo, e não ‘alta cultura’. É uma ópera caipira, música de excelência que é ovacionada em todo lugar”, louva Gasparani.

O trabalho se concentrou neste segundo semestre por obra do acaso, em decorrênci­a da liberação de recursos de patrocínio­s. Ele não interpreta­ria o Zeca que escreveu, mas acabou ficando com o papel porque não se encontrou o ator ideal. A peça estreou em setembro no Rio. O protagonis­ta veio quando ele já começava a ensaiar Insetos, que, por sua vez, acabou transferid­a pelo CCBB para 2018.

A empreitada mais recente é a nova versão para o clássico de Shakespear­e, agora um musical, cuja estreia foi no Rio, em março. Desenvolvi­da durante os ensaios de Zeca, a ideia de pontuar o romance mais famoso do teatro mundial com músicas como De Mais Ninguém e Vilarejo foi sua – Marisa é sua amiga desde os tempos de colégio –, e acabou encampada pelo diretor, Guilherme Leme, e produtores.

Para Gustavo Gasparani, o horizonte é turvo para a cultura, em geral, e o teatro, em particular, mas é preciso resistir.

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VICTORIA DANNEMANN ‘Deixa a vida me levar’. Gasparani vive o cantor
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GERLAN CIDADE/T4F Zeca. ‘Uma História de Amor ao Samba’ conta a trajetória de um dos sambistas mais importante­s do País

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