O Estado de S. Paulo

As mudanças políticas que o Mundial pode trazer à Rússia

- Jamil Chade ✽ ENVIADO ESPECIAL / MOSCOU

No dia da derrota da Rússia para a Croácia, pelas quartas de final da Copa do Mundo, uma chuva desabou sobre Moscou pela manhã. A água parecia lavar um espírito que havia sido criado pela cidade, nas ruas, entre famílias e mesmo policiais que, diante da emoção do futebol, se permitiam sair da rotina. Naquela manhã, depois da partida em que o país foi eliminada nos pênaltis, a Copa havia terminado para os russos. Agora, o Mundial está prestes a ser encerrado para o resto do mundo.

Mas, nos rostos tristes da população e na volta da rotina, a decepção pelo fim da festa é a esperança que paira sobre ativistas de direitos humanos de que a Copa tenha chacoalhad­o uma população que, por duas décadas, se conformou com um mesmo governo. Arma de propaganda de Vladimir Putin, a Copa do Mundo é também agora a grande aposta da sociedade civil de que certas mudanças possam encontrar brechas para serem alcançadas.

O Mundial levou o governo a proibir qualquer tipo de manifestaç­ões. Houve censura na divulgação de boletins de polícia e os jornais proliferar­am mensagens patriótica­s.

Ao mesmo tempo em que isso ocorreu, no entanto, a presença de 700 mil estrangeir­os criou uma nova realidade que os russos jamais tinham vivido. Foram tolerados encontros de grupos pelas ruas, o que em dias normais são dispersado­s diante do risco de que se trate de uma operação da oposição. As autoridade­s fizeram vistas grossas às bebidas pelas ruas, algo que também é proibido em épocas sem jogos.

Se não bastasse, o esforço que o Kremlin fez por mostrar que não viola direitos humanos permitiu algo impensável: a abertura de espaços “oficiais” para o debate de assuntos relacionad­os com minorias e LGBT.

“Obviamente que a grande questão que se coloca é como meter de volta à lâmpada o gênio que saiu”, disse Piara Powar, diretor executivo da entidade Fare, parceira da Fifa em assuntos relativos à discrimina­ção. “Nossa esperança é de que esses espaços e avanços sejam mantidos pelos grupos locais.” Nem todos estão tão otimistas com o pós-Copa na Rússia. Grupos de ativistas que preferem não ter seus nomes revelados com medo de represália­s temem que, depois do Mundial, uma onda ainda mais repressora seja instaurada por Putin, justamente se aproveitan­do do sistema de segurança criado para supostamen­te proteger o Mundial e seus turistas.

Mesmo durante a Copa, um evento que estava sendo apoiado pela Fifa e que tratava de homofobia sentiu na pele o que pode ocorrer na Rússia quando o assunto é considerad­o um tabu. Os organizado­res do seminário tiveram sua reserva de salas num hotel de Moscou cancelados depois que a gerência do local entendeu que o evento iria tratar de homofobia.

Na Rússia, sem um só jornal realmente independen­te do poder que possa ser comprado nas bancas ou uma oposição legítima, a Copa foi uma rara oportunida­de de abertura do país ao mundo.

Na prorrogaçã­o que começa agora, porém, o país verá uma luta entre aqueles que querem recolocar o gênio para dentro da lâmpada e voltar à rotina de um país controlado por Putin e aqueles que vão lutar para que as brechas de oxigênio sejam mantidas.

 ?? JOHN SIBLEY/REUTERS–3/7/2018 ?? De volta à rotina? Menina carrega bandeira russa na Praça Vermelha
JOHN SIBLEY/REUTERS–3/7/2018 De volta à rotina? Menina carrega bandeira russa na Praça Vermelha

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil