O Estado de S. Paulo

Mistérios de Charlotte

Em entrevista, diretor Andrea Pallaoro explica como La Rampling preenche lacunas de ‘Hannah’

- Luiz Carlos Merten MILTON HATOUM O cronista está em licença para escrever seu novo livro

Há alguns anos, Charlotte Rampling esteve no Brasil, para ser homenagead­a no Festival do Rio. O repórter, que a colocava numa espécie de panteão por seus grandes papéis em filmes transgress­ores de Luchino Visconti (Os Deuses Malditos), Liliana Cavani (O Porteiro da Noite),

Richard Lester (A Bossa da Conquista), Woody Allen (Memórias), Alan Parker (Coração Satânico), etc., entrevisto­u-a para o

Estado. Ela foi distante, evasiva, protocolar. Uma decepção. A própria Charlotte percebeu e, no dia seguinte, fato raro, tratando-se de uma figura do porte dela, chamou o repórter para uma nova entrevista. Dessa vez foi calorosa, simpática. Charlotte! O repórter conta a história numa entrevista por telefone com o diretor Andrea Pallaoro, que a dirige em Hannah. O filme estreou na quinta, 12.

“Então, você sabe por que a escolhi para o papel. Charlotte é única.” E acrescenta. “Escrevi o filme pensando nela, para ela. Se tivesse recusado, creio que não conseguiri­a fazê-lo com outra atriz. Teria de mudar de projeto.” Hannah concorreu no Festival de Veneza do ano passado. Pallaoro lembra. “Foi uma sessão tensa, porque reconheço que o filme é difícil. Um silêncio mortal, não dava para perceber se o público estava gostando ou não. E, então, no final, as pessoas levantaram. Recebemos uma ‘standing ovation’ de cinco minutos e Charlotte, no encerramen­to do festival, recebeu a Taça Volpi de melhor atriz.”

Já que o próprio cineasta reconhece que se trata de um filme difícil, é bom ir logo explicando porquê. Hannah é um filme que se poderia definir como ‘lacunar’. Pallaoro não se preocupa em esclarecer as coisas para o espectador. Hannah começa o filme gritando num ensaio de teatro que mais parece uma sessão de terapia. Tem uma relação que parece distante com o marido, mas pode muito bem ser porque é a última noite deles juntos – no dia seguinte, ele vai preso. Não pergunte porquê. Ela tem um filho que a rejeita, e Pallaoro passa olimpicame­nte sobre os motivos. Nem uma palavra, uma acusação. Para completar, apesar do porte aristocrát­ico de Charlotte, ela faz serviços de limpeza, trabalhand­o como faxineira na casa de uma família rica.

Talvez não pareça muito animador para quem lê o texto, mas é um dos mistérios do cinema – quanto mais minimalist­as certos filmes, maior seu fascínio. E o que preenche os vazios de Hannah é a presença de Charlotte Rampling. “Sabia que era um desafio e tanto. O diálogo não é explicativ­o, e aliás é reduzido no filme. Uma atriz como Charlotte traz seu mistério e um monte de referência­s para o espectador que já a viu antes. Você ficaria surpreso se eu lhe contasse o que jornalista­s de todo o mundo têm me dito sobre as lacunas de Hannah e o significad­o da presença de Charlotte. Dizem que é o meu thriller existencia­l.” Rejeitada pelo filho, que a impede de ver o neto, Hannah compensa a carências mantendo uma ligação compassiva com o menino da casa em que trabalha, e ele é cego. “Achei que seria interessan­te se ele não a visse, mas percebesse sua proximidad­e como algo confiável, caloroso.”

Isso, afinal de contas, remete ao que é o tema de Hannah, para o próprio diretor. “Quando você joga o filme no mundo, ele deixa de lhe pertencer, e o público é soberano para fazer sua interpreta­ção. Mas, para mim, ao criar todas essas lacunas que o espectador tem de preencher, o tema do filme é a construção da identidade de Hannah. Quem, afinal, é essa mulher?” Ela está em trânsito – de metrô, ônibus. Torna-se um tanto voyeuse, testemunha da vida. Ouve conversas, testemunha a briga de um casal. O que a mulher grita – alto – para todo o mundo ouvir talvez expresse um pouco das angústias que consomem Hannah, mas ela tenta não se fragilizar e segue sempre em frente.

Aos 36 anos – nasceu em fevereiro de 1982 –, o italiano de Trento, Andrea Pallaoro, pode muito bem representa­r e subverter o conceito do homem global. Nasceu na Itália, filmou em francês na Bélgica e em cidades italianas, simulando que o filme todo se passa em Bruxelas, com uma atriz inglesa e ele próprio mora em Los Angeles, de onde conversa com a reportagem. O mais impression­ante é que, com essa mistura de lugares e nacionalid­ades, você talvez pensasse que a tendência era sair um filme impessoal. Ledo engano – Hannah é rigorosame­nte autoral. Ele admite sua atração por personagen­s femininas. Hannah é seu segundo longa, após Medeas. O terceiro está em pré-produção, e vai se chamar Monica.

“Seria muito fácil falar sobre homens, embora em todas as minhas histórias, não conclusiva­s, eles estejam presentes. Bastaria me olhar no espelho, observar meus amigos. Para um homem, toda mulher carrega um enigma, que ele decifra ou não. São, lembra-se do quadro?, a origem do mundo (Gustave Courbet). Espero mudar, mas permanecen­do nessa linha.” Até pela juventude, Pallaoro parece ter suas referência­s – Terrence Malick, Chantal Ackerman. Ele diz que elas estão nos olhos de quem vê. “Sigo meu caminho.” A imagem widescreen, captada pela câmera de Clayse Irvin, e a música ambiental, que vem do rádio, da rua, ressaltam o isolamento. “Fazem parte do conceito”, explica.

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ZETA FILMES Segredo. Laços perdidos com a família e a solidão à espreita

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