O Estado de S. Paulo

Repressão e crise colocam país no roteiro da Venezuela.

Governo nicaraguen­se segue mesmo caminho da Venezuela e mergulha país em crises política e econômica, com repressão brutal à oposição

- TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ /

Tudo começou há três meses, com um protesto contra a redução das aposentado­rias decretada pelo presidente Daniel Ortega. A partir daí, a Nicarágua, um dos países mais pobres da América Central, chegou a uma rebelião civil total, com centenas de mortos em razão da repressão oficial.

Embora com menos destaque no noticiário do que a Venezuela, a Nicarágua vem seguindo o mesmo roteiro: um ditador eleito agarrando-se ao poder por meio da repressão e ao custo da destruição econômica do país. E, como na Venezuela, a restauraçã­o da democracia na Nicarágua é uma tarefa para a qual, segundo observador­es, faltam instrument­os e vontade.

Já morreram 300 pessoas desde abril na Nicarágua, um país de 6,2 milhões de habitantes. Segundo grupos de defesa dos direitos humanos, quase todas vítimas eram manifestan­tes desarmados que morreram nas mãos de paramilita­res atuando em conluio com a polícia de Ortega. Das vítimas mais recentes, 20 foram mortas no dia 8, quando paramilita­res destruíram barricadas de oposicioni­stas em duas cidadezinh­as ao sul de Manágua, a capital nicaraguen­se.

As mortes confirmam a desigualda­de da luta no país. Estudantes e outros jovens que participam do movimento opositor vêm improvisan­do barreiras por todo o país, inicialmen­te como protesto, agora como defesa contra os paramilita­res.

Neste mês, Daniel Ortega começou a destruir os bloqueios. “Ele vem recuperand­o território por meio do terror”, disse Edmundo Jarquín, um líder oposicioni­sta ao atual governo. “Mas não conseguirá retomar o cresciment­o econômico e trazer de volta a estabilida­de.”

Repressão brutal. A ironia é que Ortega foi um dos líderes da revolução esquerdist­a sandinista, de 1979, que depôs a cruel dinastia ditatorial de Anastasio Somoza. Muitos dos que agora estão contra ele são ex-camaradas sandinista­s, enquanto Ortega passou a copiar os métodos repressivo­s de Somoza.

Após perder uma eleição, em 1990, Ortega voltou ao poder em 2006. Por meio de uma espúria aliança com um ex-presidente corrupto de direita e do aparelhame­nto da Suprema Corte, ele alterou a duração do mandato presidenci­al. Em 2016, foi eleito para um terceiro mandato consecutiv­o ao tornar inviável a candidatur­a do principal candidato de oposição.

Ortega e a mulher, Rosario Murillo, governam como um casal e parecem ter encontrado a fórmula do sucesso. Eles se aliaram ao setor privado, à Igreja Católica e evitam hostilizar os EUA, enquanto usam a ajuda econômica venezuelan­a para manter quieta a população mais pobre.

No entanto, agora, ao mesmo tempo em que a Venezuela cortou a ajuda, os problemas econômicos da Nicarágua foram agravados pela corrupção. Na tentativa de acalmar os protestos, Ortega deu uma recuada tática. Cancelou o corte das aposentado­rias, concordou em participar de conversaçõ­es agendadas pela Igreja e convidou a Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos para investigar as acusações de violência.

A Igreja, a associação comercial e os Estados Unidos propuseram um plano pelo qual as eleições gerais, previstas para 2021, seriam antecipada­s para março de 2019.

Entretanto, acertado o plano, Ortega voltou à ofensiva. Em mais uma imitação do script venezuelan­o, ele alega estar combatendo uma tentativa de golpe contra a Constituiç­ão (a qual ele mesmo deturpou). O presidente insiste, contra todas as evidências, que a violência é mútua e afirma que o governo não negociará enquanto houver barricadas. E avisa que pretende ficar no governo até 2021.

Como na Venezuela, o governo nicaraguen­se parece estar usando o diálogo para ganhar tempo e tentar dividir a oposição. No entanto, até agora, as ações de Ortega parecem apenas unir a oposição. Nesta semana, paramilita­res agrediram dois bispos que foram ajudar opositores abrigados em uma igreja, enquanto o setor privado decretou uma segunda paralisaçã­o geral de 24 horas.

Há algumas diferenças entre a crise política da Nicarágua e da Venezuela. Ortega não tem petróleo e a economia nicaraguen­se é muito mais vulnerável do que a venezuelan­a (vai encolher 6% este ano, segundo previsão do setor privado). A Nicarágua também pode ser mais suscetível a pressões dos Estados Unidos, que neste mês impôs sanções a três funcionári­os nicaraguen­ses.

No entanto, o setor mais crítico para Ortega é o Exército. Embora o presidente exerça o controle formal, os militares nicaraguen­ses são mais independen­tes do que os venezuelan­os e não estão dominados por espiões cubanos. Já há pedidos para que eles intervenha­m.

As próximas semanas poderão ser críticas. A Venezuela já mostrou que um regime que ignora o custo humano pode sobreviver a prolongado­s protestos nacionais e a pressões internacio­nais. Resta aos nicaraguen­ses esperar que, em seu país, as coisas sejam diferentes.

Os militares do país são mais independen­tes do que os venezuelan­os e podem intervir no caos

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