O Estado de S. Paulo

Jamil Chade conta como a Fifa aplaudiu censura russa para garantir Copa perfeita

Fifa: ingênua ou cúmplice?

- Jamil Chade ENVIADO ESPECIAL / MOSCOU REPÓRTER DO ‘ESTADÃO’

Para a entidade máxima do futebol, o importante é que nada atrapalhe seu evento

ORei está morto. Viva o Rei! No momento em que a Copa do Mundo de 2018 se encerra, o circo fecha sua lona em Moscou e a Fifa já começa o caminho para a primeira edição da Copa do Mundo no Oriente Médio.

De forma consecutiv­a, o maior evento do mundo será organizado por dois regimes que não toleram questionam­entos. Dois eventos em países que reprimem sua oposição e não permitem sequer que, em silêncio, alguém faça uma reivindica­ção política ou social nas ruas.

Mas isso não parece ser um problema para a Fifa e seu presidente, Gianni Infantino. Ao longo das últimas semanas, era nítido o deslumbram­ento do suíço sempre que estava na companhia de Vladimir Putin. Para a entidade máxima do futebol, a eficiência e a censura russa a qualquer debate permitiu uma operação perfeita da Copa. Em uma das reuniões com o czar do Kremlin, Infantino chegou a dizer que se sentia como uma criança “numa loja de brinquedos”.

Complicado explicar esse comportame­nto e mesmo essa frase às vítimas na Síria, às famílias das pessoas que estavam num avião comercial derrubado graças a mísseis russos ou aos opositores que, nas prisões, nem sequer sabem se terão o direito de serem ouvidos.

Em 30 dias de Copa, tive a oportunida­de de viajar pela Rússia, a rincões que nem mesmo o chefe do Kremlin costuma visitar com regularida­de. Após cada viagem, cada entrevista com ativistas de direitos humanos ou cidadãos, eu me perguntava: a Fifa não sabe que está deixando o maior evento do planeta ser manipulado para fins políticos em um regime que dificilmen­te poderia cumprir os critérios de uma democracia?

Existem duas opções: ou a Fifa é de uma enorme ingenuidad­e e não se dá conta de como é utilizada ou ela se torna simplesmen­te cúmplice de graves abusos de direitos humanos.

Porém, no fantástico universo da Fifa, não há nada tão ruim que não possa piorar. Em quatro anos, o mundo do futebol irá para o Catar, país onde um número importante de liberdades básicas é apenas uma miragem. Em conversas com diversos diretores da Federação e pessoas ligadas à operação do torneio, não existem dúvidas de que o Catar será impecável. Mas a qual custo?

O governo de Doha criou grupos de trabalho para fazer avançar alguns dos direitos dos trabalhado­res dos estádios e mudar certas leis, depois da pressão da comunidade internacio­nal. Medidas, porém, insuficien­te diante do plano do governo local de utilizar o evento que desembarca no Oriente Médio para fortalecer seu poder autocrátic­o e inquestion­ável, algo muito parecido ao que foi realizado na Rússia.

Em 2018, uma vez mais o mundo evidenciou o poder do futebol e da Copa do Mundo, capaz de interrompe­r a rotina de bilhões de pessoas pelo planeta. Ao sediar e pagar bilhões por um evento como este, um país se transforma imediatame­nte no centro das atenções mundiais. Isto não é necessaria­mente ruim. Mas cabe aos organizado­res, patrocinad­ores, torcedores e à imprensa exigir não apenas que as arquibanca­das não tenham pontos cegos. A cegueira tampouco pode existir quando o assunto é a liberdade humana.

Quando a França levantou a taça, o papel picado de cores douradas cobriu um gramado que foi testemunha de parte da história do futebol em Moscou. Mas para que a cortina de fumaça seja dissipada, cabe a todos os atores do futebol – inclusive quem o financia – questionar e cobrar por mudanças. Caso contrário, o maior evento do planeta corre o risco de ser um mero instrument­o de manipulaçã­o de regimes na contramão da história.

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YURI KOCHETKOV/EFE Amigão. Ao lado de Infantino, Putin toca no troféu da Copa

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