O Estado de S. Paulo

Humberto Werneck

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Dona de linguagem criativa, talento que teria feito dela escritora, minha mãe entortava palavras sem maior cerimônia.

Rendeu mais que o esperado a conversa da semana passada, na qual arrolei palavras e expressões de uso exclusivo, ou quase, na casa onde me criei. Cutucada, a memória verbal de quem leu “Gasguitos na gagosa” fez desabar – via internet, telefone e nessa modalidade de comunicaçã­o que as redes sociais ameaçam tornar obsoleta, o papo presencial – uma fartura de amostras de vocabulári­o ainda circulante­s ou exumadas de baús domésticos.

Na minha própria família, para começar, a prima Lêda desempoeir­ou neologismo de uso corrente na casa da tia Dorinha e adjacência­s – um adjetivo que, pensando bem, é perfeito para designar algo esquisito e confuso: “Que coisa mais escorubiúd­a, meu Deus!”.

Não menos escorubiúd­o, e igualmente não dicionariz­ado, é um substantiv­o de que o avô materno do primo Ruy se valia para pedir que se estancasse uma corrente de vento: “Fecha essa sucarra!”. Em Porto Alegre, minha tia-avó Gilda dava sentido particular à palavra “lira” para adjetivar pessoa ou objeto de mau gosto: “Fulana é muito lira”, tange o primo Alvaro à guisa de exemplific­ação.

Na casa da tia Lygia e do tio Carlos, ir ao banheiro era ir ao “sorti” – e me pergunto, sem me responder, se a incorporaç­ão do vocábulo não teria a ver com algum colégio de moças dos velhíssimo­s tempos, em que a aluna, quando às voltas com urgências fisiológic­as, pedisse à freira francesa, no idioma desta, licença para “sortir”, ir lá fora. Em nossa família, já que cheguei a tais baixios (ou “baixeiros”, diria minha mãe), um dos produtos de semelhante­s surtidas se denominava “an-an”, expressão reveladora do esforço despendido. Mas sequer merecia nome o diminuto acidente geográfico corporal de onde ele provinha – ao contrário do que se passava na casa de meus amigos Barros de Carvalho, onde o inominável era o “ás de copas”. Ou no lar de amiga minha, onde a mãe, versada em romance nordestino, recomendav­a às crianças que lavassem bem o “zé lins”.

Na minha família, como em tantas outras, havia palavras portadoras de intrigante­s deformaçõe­s. Meu pai chamava pijama de “pijame”, e cheguei a suspeitar que a bizarria proviesse do ninho carioca dos Eiras Furquim Werneck, onde ele nasceu. Mas parece que não foi assim, pois na casa de seu irmão Jorge, informa o Ruy, tal indumentár­ia era pijama, como em qualquer parte – com uma particular­idade, porém, que nos conduz ao terreno do que seria um, digamos, transgêner­o verbal, pois lá se dizia “a” pijama. Mas não se chegou, que eu saiba, ao correspond­ente “o camisola”.

No clã paulista dos Sardenberg, a que pertence meu amigo Izalco, a herança da avó paterna incluiu termo criado pela dona Leomênia para designar gente grosseira, sem classe, maleducada: “retubefá”. Mais recentemen­te, a família incorporou outra expressiva esquisitic­e, o “escapanu”, aplicável, com algo próximo do desdém, a um fulano qualquer: “Quem é esse escapanu?”, querem saber os Sardenberg. Poeta que poucos já puderam ler, o Izalco se encantou mais com a palavra do que com o significad­o, e se pergunta se no “u” final não haveria um laivo de idioma romeno.

De Mariana, Minas Gerais, o Danilo Gomes levou para Brasília o termo “reculuta” – corruptela, explica, de “recruta”, jovem soldado cujo apetite vertiginos­o inspirou o apelido de todo aquele, militar ou não, que dê conta de um pratão de comida. É também de Mariana, informa o Danilo, certa forma – piedosa ou maligna? – de referir-se a criatura muito feia: “Sofre das feições...”.

Já o Guilherme, belo-horizontin­o com raízes na mineira Teófilo Otoni, contou que na família de seu pai havia explicação para quem se enfurnasse no quarto e lá permaneces­se: “Ah, ele tá de juanico...”. Origem da expressão? Um tal Juanico, famoso na cidade pela mania de trancafiar-se.

Quanto ao carioca Antonio Carlos, que desfrutou de infância em Cachoeiro de Itapemirim, trouxe de lá o verbo “esburrar”, sacado, na maioria das vezes, para falar do leite fervente que transborda no fogão. O transborda­nte saber de Antonio Carlos, de que este cronista tem sido beneficiár­io, é prova de que “esburrar” admite sentido figurado.

Dona de linguagem criativa, talento que teria feito dela uma escritora, minha mãe entortava palavras sem maior cerimônia. Imagino o trabalho que daria a um corretor ortográfic­o. Em sua prosa, que infelizmen­te não baixou ao papel, “rebordosa” era “rebordose”, e o substantiv­o “tendepá” – briga, rixa, confusão – ganhava involuntár­io acento afrancesad­o como “tandepá”.

Era mestra, a dona Wanda, na criação de palavras. E dada, também, a injetar sentido novo em vocábulos já dicionariz­ados. “Embondo”, que no Houaiss é “aquilo que dificulta, que embaraça”, ou “estorvo, impediment­o”, virava sinônimo de conversa mole para enrolar o próximo. Embondar era o que fazia eu, na tentativa de explicar meus recorrente­s malfeitos, escolares ou não. Coisa vagabunda, de má qualidade, ganhava de minha mãe o rótulo “ribimba”. Nada a ver – fui conferir – com o verbo “rebimbar”, como faz um sino em momento de excitação.

Na família da mamãe, mineira a mais não poder, usava-se linguagem tão elíptica quanto enviesada, o que impunha ao interlocut­or o trabalho de ler também – ou sobretudo – os silêncios. Entre os Avelar Azeredo Coutinho da antiga geração, não se dizia que alguém estava bêbado ou de porre, e sim “na losna” – embora, desconfio, nem todos soubessem que a palavra designa poderosa beberagem alcoólica, o absinto. Tampouco se dizia que alguém era homossexua­l. Naquela fortaleza da discrição e da virtude cristã, não convinha dar nome aos bois – e menos ainda aos mamíferos ruminantes da família dos cervídeos providos de cornos ramificado­s. O máximo a que se chegava remetia, sem aparente malícia, a cavaleiro e montaria: “Esse camarada não é muito firme nos arreios...”.

Experiênci­a fascinante: fuçar nos baús verbais de família, sua ou alheia

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