O Estado de S. Paulo

Seria verdade se não houvesse juízes em Berlim

- FRANCISCO FERRAZ PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA E EX-REITOR DA UFRGS, É CRIADOR E DIRETOR DO SITE WWW.MUNDODAPOL­ITICA.COM.BR

Após o gesto de arrogância do imperador Frederico II que exigia comprar o moinho de um camponês para ampliar seu castelo, ameaçando-o de tomar-lhe a propriedad­e diante da recusa, assim respondeu o camponês: “Isso seria verdade, se não houvesse juízes em Berlim!”.

Poucas expressões ilustram com igual força a esperança do cidadão comum na Justiça para protegê-lo da arbitrarie­dade. Sob a égide dessas esperanças o Poder Judiciário adquiriu uma autoridade moral e uma responsabi­lidade únicas na edificação do Estado de Direito.

Enquanto as autoridade­s de outros Poderes podem ser influencia­das por interesses pessoais, preconceit­os e simpatias políticas, os juízes permanecem firmes, serenos, comprometi­dos com a Constituiç­ão e o Estado de Direito. Embora seja uma imagem fortemente idealizada, ela correspond­e às expectativ­as da cidadania democrátic­a e os juízes e ministros, como regra, zelam para não se afastar delas.

Ao STF, cúpula do Judiciário, sempre se reconheceu essa imagem de independên­cia na defesa dos princípios democrátic­os e da Constituiç­ão, de preservaçã­o da segurança jurídica, além da óbvia coerência jurídica, da autêntica cortesia e do respeito mútuo entre seus pares e do indispensá­vel equilíbrio pessoal. Hoje, infelizmen­te, o STF parece afastar-se desses princípios que o legislador constituci­onal lhe outorgou e a cultura cívica dos cidadãos consolidou.

Um órgão concebido para pronunciar-se primariame­nte por seu plenário está cada vez mais decidindo por suas turmas, quando não monocratic­amente. Mais grave ainda, está incorrendo na perigosa prática de opor turma ao plenário, sempre que com esse expediente se contorne o problema da maioria.

Difícil entender como não percebem os ministros que, ao substituír­em o pronunciam­ento do plenário pelo da turma ou pelo monocrátic­o, a natureza suprema do STF se debilita; que a condição individual de ministro fica comprometi­da por não ter a autoridade moral que a de membro do plenário lhe confere.

Mais grave ainda é não estar consciente de que o conflito pessoal, público e agressivo entre ministros reduz mais ainda a legitimida­de de um órgão que foi concebido para lidar com sabedoria, prudência e respeito com as inevitávei­s divergênci­as.

É também inconcebív­el permitir que divergênci­as transforma­das em conflitos com titulares de outras esferas judiciais comprometa a autoridade moral dos ministros, contribua para estimular dúvidas sobre sua isenção e enfraqueça a imagem do Poder Judiciário e da própria democracia para os cidadãos.

Mais lamentável, porém, é o fato de que o Poder Judiciário, não obstante suas imperfeiçõ­es, era o que nos restara da tradição de racionalid­ade, independên­cia, profission­alismo, competênci­a e dedicação que originalme­nte formatou a natureza do serviço público, herdado da experiênci­a europeia do século 19 e que, pelo abuso do casuísmo interessei­ro e do aparelhame­nto partidário do Estado, destruímos ao longo dos séculos 20 e 21.

Uma tradição secular, cultivada na Corte por sucessivas gerações de juristas, ficou comprometi­da pela interferên­cia política, pelos egos exacerbado­s, pelas antipatias pessoais, por uma desnecessá­ria e exagerada presença na mídia, pela exibição descabida de erudição e pelo uso legitimado­r dos argumentos especiosos, falácias e até mesmo chicanas para obter maioria em decisões.

Pela anuência de seus ministros, questões políticas desgastant­es que não se encontram taxativame­nte decididas nas leis, nos decretos, na tradição, nas regras morais, no bom senso são levadas a decisões da Suprema Corte, cuja pauta vem sendo ocupada por certos assuntos políticos que bem podiam ser decididos pelas Casas do Legislativ­o, pelos partidos, pelo governo federal e por órgãos de outras instâncias do Judiciário.

Essa abertura do STF para as questões políticas foi muito além do razoável por motivos procedimen­tais, como a pauta sobrecarre­gada de ações que exigem julgamento imediato; razões político-midiáticas decorrente­s da transmissã­o das sessões pela TV e do tratamento dos ministros pela mídia como personagen­s políticos; pela ação dos advogados que, em razão de seus clientes, ganharam acesso privilegia­do ao STF; e, principalm­ente, pela esperteza da classe política – do Legislativ­o e do Executivo –, que, ameaçada pela Operação Lava Jato, evita decisões impopulare­s, entregando de bom grado parte de suas responsabi­lidades ao Judiciário na sua esfera mais elevada.

O maior adversário do STF entretanto, a constrange­r sua liberdade, é a jurisprudê­ncia firmada. Há que contorná-la para ajustar a decisão às necessidad­es políticas. Nesse procedimen­to reside um dos maiores riscos para qualquer tribunal superior.

Nada é mais difícil para uma Corte de Justiça do que a fixação da jurisprudê­ncia firmada. Não por outra razão os ministros costumam ser avaros para exercer esse poder e mais avaros ainda para modificá-la.

Sabem que, ao fixá-la, estão assumindo a responsabi­lidade de decidir por antecipaçã­o, o que só pode ser feito transitand­o no limite de suas competênci­as. Sabem que essa é uma competênci­a que se legitima por sua permanênci­a, no duplo sentido de duração temporal e resistênci­a à mudança.

A história das instituiçõ­es democrátic­as ensina que por vezes, em casos de graves crises, instituiçõ­es podem perder sua capacidade de reagir aos desafios que enfrentam. Nessas situações por vezes ocorre o fenômeno da substituiç­ão institucio­nal, isto é, outra instituiçã­o dilata suas competênci­as para substituir na prática e transitori­amente a que foi paralisada pela crise. Infelizmen­te, na atual situação, quando Legislativ­o e Executivo evitam enfrentar a grave crise em que nos encontramo­s para se ocuparem das eleições, o Judiciário, pelo seu órgão supremo, perdeu as condições de assumir a função de substituiç­ão institucio­nal, como uma reserva de emergência da democracia.

STF perdeu condições de assumir função de reserva de emergência da democracia

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