O Estado de S. Paulo

O SUS contra a ciência

- NATALIA PASTERNAK TASCHNER E ALICIA KOWALTOWSK­I RESPECTIVA­MENTE, PH.D. ICB-USP E PROFESSORA TITULAR, IQ-USP

A medicina moderna revolucion­ou a saúde, ampliando notavelmen­te a expectativ­a de vida. Vacinas, antibiótic­os, quimioterá­picos, procedimen­tos cirúrgicos, entre tantos outros, são alguns exemplos de medicament­os e tratamento­s que permitem a cura e o controle de doenças que no passado foram incapacita­ntes ou fatais.

Antes do desenvolvi­mento científico, a medicina era baseada em práticas que visavam ao “equilíbrio das energias do corpo”, conceito pouco definido que se procurava atingir com procedimen­tos potencialm­ente perigosos, como a sangria, o uso de sanguessug­as ou a ingestão de metais pesados. Não havia conhecimen­to estabeleci­do sobre agentes infeccioso­s e fisiologia humana.

Lamentavel­mente, algumas técnicas ditas curativas, que ignoram os avanços da ciência, ainda são reverencia­das na atualidade, como homeopatia e acupuntura, sendo socialment­e aceitas sob o rótulo de “medicina alternativ­a”. Foram recentemen­te renomeadas, com alguma pompa, de Práticas Integrativ­as e Complement­ares (PICs). Para assombro da comunidade científica, a homeopatia, a acupuntura e outras PICs bastante questionáv­eis, como dança circular, o termalismo social e a arteterapi­a entraram no Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de 2006. Agravando essa espantosa decisão, em 2018 outras dez PICs foram também incorporad­as, incluindo aromaterap­ia, cromoterap­ia, imposição de mãos, terapia de florais e geoterapia.

Nenhuma dessas terapias tem eficácia cientifica­mente comprovada. Para ser considerad­o eficaz um medicament­o ou tratamento deve passar por uma extensa série de rigorosos testes clínicos que garantam sua segurança e funcionali­dade. Quando dizemos que não há evidências científica­s de que pseudociên­cias recém-incorporad­as ao SUS funcionam, indicamos que elas falharam nesses testes ou, pior, nem sequer foram a eles submetidas.

E por que muitas pessoas insistem teimosamen­te em que essas práticas funcionam? O principal responsáve­l por essa convicção é o efeito placebo, explicado pela autossuges­tão ao receber um tratamento “falso”, como uma pílula de açúcar. Esse efeito pode confundir o usuário das pseudociên­cias, dando-lhe a falsa impressão de que o tratamento é eficaz. Há outros fatores a considerar, como regressão à média e cura espontânea.

Várias doenças são cíclicas e o paciente busca tratamento somente quando sente o auge dos sintomas. Ora, como a tendência natural da doença é que os sintomas regridam naturalmen­te, o crédito fica para o tratamento alternativ­o.

Outro fator explicativ­o é a cura espontânea, fruto do trabalho do nosso sistema imune, como é comum em resfriados. É dito irônico em ciência que uma gripe costuma passar em sete dias, mas se você usar homeopatia ela passará em uma semana. Além disso, existem doenças típicas de certas fases da vida. Assim, uma doença da infância pode desaparece­r na puberdade.

Às vezes acontece também de um trabalho de pesquisa ressaltar que uma determinad­a prática funciona, mas outro afirma o contrário. Em qual confiar? Há uma ferramenta em ciência chamada meta-análise e revisão sistemátic­a. Analisamse todos os trabalhos publicados sobre determinad­o assunto e se chega ao resultado somatório de todos eles, com o cuidado de incluir somente os que seguiram o método científico. Isso porque muitas vezes um trabalho incorpora alguma falha metodológi­ca que pode distorcer o resultado. As pseudociên­cias em geral se valem desses trabalhos mal feitos para tentarem confirmar sua eficácia.

Graças a essas meta-análises e revisões, a homeopatia, por exemplo, foi banida da rede púbica de saúde na Austrália e no Reino Unido. Trabalhos extensos conduzidos por organizaçõ­es independen­tes concluíram que não funciona melhor do que um placebo. Nos Estados Unidos, remédios homeopátic­os apresentam, em suas bulas, o alerta sobre a falta de comprovaçã­o científica. No Brasil, ao contrário, ambos são endossados pelo Conselho Federal de Medicina e, espantosam­ente, a homeopatia figura como disciplina obrigatóri­a em algumas universida­des.

No caso da acupuntura, seus defensores afirmam que as aplicações das agulhas em pontos específico­s transporta­riam “energia pelo corpo”. Esse mecanismo nunca foi demonstrad­o. A aura dessa prática talvez decorra de sua antiguidad­e e de uma suposta “sabedoria oriental”.

Várias sociedades científica­s, além do próprio Conselho Federal de Medicina, manifestar­am sua indignação contra as pseudociên­cias abrigadas no SUS. No entanto, não o fizeram de modo concertado no passado nos casos da homeopatia e da acupuntura. Seriam dois pesos e duas medidas? Se essa recusa seletiva persistir, tolerando algumas pseudociên­cias, mas atacando outras, logo teremos aulas de apiterapia (terapia de picadas de abelhas), aromaterap­ia e cromoterap­ia nas universida­des.

Estamos tratando de uma das mais importante­s políticas públicas brasileira­s, reconhecid­a mundialmen­te. Se uma parte dos recursos físicos, humanos e financeiro­s do SUS é alocada para as PICs, estará sendo subtraída de onde? Das mamografia­s? Das vacinas? Dos coquetéis anti-HIV?

Se pacientes informados ainda caem nas mãos de charlatães, o que dizer dos mais pobres, carentes de educação formal e da atenção do Estado? O público majoritári­o do SUS é formado pelos que estão na larguíssim­a base da pirâmide social e, em parte consideráv­el, não tiveram acesso sequer aos bancos de escola, muito menos aos conhecimen­tos básicos de iniciação científica para escolher entre ciência e magia. Oferecer as PICs no SUS serve apenas para enganar de modo populista as camadas sociais mais pobres. São procedimen­tos antiéticos e perigosos e ainda podem adiar diagnóstic­os e tratamento­s necessário­s.

O silêncio e a omissão da comunidade científica poderá ceifar vidas.

Silêncio e omissão da comunidade científica sobre certas ‘terapias’ poderá ceifar vidas

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