O Estado de S. Paulo

O desafio do saneamento

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A Medida Provisória (MP) 844/18, editada pelo presidente Michel Temer no último dia 6, novo marco regulatóri­o do saneamento básico, é a proposta do governo – agora nas mãos do Congresso – para resolver um dos mais graves problemas enfrentado­s pelo País. Ela busca criar condições para superar a incapacida­de do poder público, à míngua de recursos, de responder ao desafio de incorporar 70 milhões de brasileiro­s ao sistema público de coleta de esgoto. Uma situação inaceitáve­l, que acarreta graves riscos de saúde para essa população.

Segundo o ministro das Cidades, Alexandre Baldy, “a MP dará segurança jurídica aos contratos das companhias estaduais de saneamento e condições para que os municípios possam gerar competitiv­idade e atrair investimen­tos”. Esses investimen­tos são principalm­ente de capitais privados, o que tornou esse ponto – de importânci­a fundamenta­l da proposta do governo – um dos mais polêmicos da MP. É alvo de elogios dos que nele veem a única forma de atrair os recursos indispensá­veis para tornar realidade o cumpriment­o da meta de universali­zar o serviço de água e esgoto até 2033, fixada pelo Plano Nacional de Saneamento Básico, e de críticas e ressalvas de quem não acredita ser esse o melhor caminho para isso, pois poderia prejudicar as empresas estaduais que hoje atuam no setor, em benefício de grupos privados que não teriam interesse nos municípios menores.

No atual sistema, as prefeitura­s podem cuidar diretament­e do serviço de saneamento básico, contratar para isso a companhia estadual ou fazer licitação para contratar uma empresa privada, o que as normas em vigor não facilitam e, por isso, tem sido raro. O resultado é que hoje as empresas privadas que cuidam de saneamento básico estão presentes em somente 6% dos municípios. Como essa situação já dura alguns anos, tudo indica que pelas regras atuais não há mais como avançar nessa direção.

A solução proposta pela MP para atrair capitais privados para o setor e romper o marasmo em que ele se encontra foi praticamen­te obrigar os municípios a abrir licitação para escolher a quem conceder o serviço: à companhia estadual ou a uma empresa privada. O argumento dos que veem essa medida com desconfian­ça – ela levaria as empresas privadas a ficarem com os municípios mais prósperos, onde o negócio é mais atraente, deixando para as estatais os menores, mais pobres e menos rentáveis – não se sustenta.

Primeiro, porque o titular da concessão é o município, ou seja, ele é que decide a quem entregá-la. Isso bastaria para encerrar a questão, porque a MP não toca – nem poderia fazê-lo – nesse direito. Ao contrário, facilita e incentiva seu exercício. Segundo, porque na licitação os concorrent­es partem de condições iguais. Uma concorrênc­ia em igualdade de condições não deve, por princípio, prejudicar uma das partes. Terceiro, porque a meta de universali­zação do serviço de saneamento é mantida e reafirmada pela MP, como não poderia deixar de ser.

O que a licitação fará será manter a igualdade na competição, que as empresas privadas sempre reivindica­ram, com justa razão. Do ponto de vista do interesse público, ela possibilit­ará aos municípios escolher o concession­ário mais competente, do ponto de vista técnico e de gestão, e que ofereça condições mais atraentes. Quanto aos municípios menores, as entidades que representa­m as empresas privadas sustentam que elas têm interesse também neles. Tanto isso é verdade que eles representa­m mais da metade de seu negócio, porque são lucrativos.

Essa e outras questões certamente serão levantadas durante os debates sobre a matéria no Congresso. O que se deve evitar a todo custo é – com base nesse temor, alimentado principalm­ente pelas companhias estaduais – perder mais uma oportunida­de de facilitar a expansão do capital privado nesse setor. Sem o concurso dele, já que o Estado não dispõe de recursos para enfrentar sozinho esse desafio, o País não tem condições de superar as graves deficiênci­as do saneamento básico.

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