O Estado de S. Paulo

Cresciment­o dos novos meios na América Latina

Em muitos países da região, imprensa tradiciona­l faz um bom trabalho para manter governos sob controle

- / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Durante os distúrbios na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega tentou uma tática que já havia funcionado antes. Em León, reduto do governo, brutamonte­s leais a seu regime tentaram colocar estudantes universitá­rios em um ônibus para Manágua para ajudar a suprimir os protestos. Os estudantes se recusaram. Eles tinham visto vídeos da polícia batendo em manifestan­tes e não queriam participar. A resistênci­a, relatada em sites de notícias independen­tes, inspirou mais protestos.

Depois que Ortega foi eleito, em 2006, ele vendeu metade dos canais estatais de radiodifus­ão, colocou seus filhos no comando da outra metade e deixou sua mulher (que também é vice-presidente) apresentar­se por 20 minutos ao dia na TV nacional. Mas páginas nas mídias sociais estão cobrindo os protestos, enquanto canais mais estabeleci­dos, como o 100% Noticias, pararam de se autocensur­ar. “As pessoas não estão mais interessad­as em notícias fornecidas pelo regime”, diz Carlos Fernando Chamorro, dono do Confidenci­al, um jornal independen­te.

Em muitos países latino-americanos, a mídia tradiciona­l fez um trabalho razoável de responsabi­lizar os governos. Jornais de Brasil, Argentina, Peru e Guatemala investigar­am a corrupção e ajudaram a derrubar presidente­s e ministros. Na Colômbia, a Semana, uma revista de notícias, tem uma longa tradição de denunciar abusos das forças de segurança. Muitos jornalista­s, especialme­nte em províncias distantes, foram assassinad­os por seu trabalho, muitas vezes por traficante­s de drogas ou outros poderosos locais.

Mas os mercados de mídia da América Latina tendem a ser pequenos e dominados por magnatas com outros negócios, que prezam o bom relacionam­ento com os governos. Eles estão sendo abalados pela mídia digital. “Sem a necessidad­e de comprar ou alugar máquinas de impressão, os editores digitais podem começar apenas com o trabalho duro”, diz Janine Warner, da SembraMedi­a, uma ONG que ajuda jornalista­s latino-americanos a se tornarem empreended­ores. Seu diretório lista mais de 770 sites em 19 países que “atendem ao interesse público” e não dependem de uma única corporação ou partido pela receita.

Nas ditaduras elas são as únicas vozes independen­tes dos meios de comunicaçã­o. Na Venezuela, o Efecto Cocuyo

(“Efeito Vagalume”) relata fatos que o regime tenta esconder, incluindo contagens de homicídios e a taxa de câmbio do mercado negro. Em Cuba, empresas iniciantes como El Estornudo

(“O Espirro”) e o Periodismo de Barrio,

embora cautelosos em questionar a legitimida­de do regime, trazem relatos críticos sobre o país.

Em lugares mais livres, os iniciantes estão desafiando o oligopólio tanto quanto o oficialism­o. De acordo com a Unesco, na maior parte da América Latina, uma única empresa controla cerca de metade do mercado em cada categoria de mídia. No Chile, duas empresas de jornais, El Mercurio e Copesa, têm mais de 90% dos leitores.

Na Colômbia, três conglomera­dos têm quase 60% da audiência impressa, de rádio e internet. No México, o governo de Enrique Peña Nieto, cujo mandato termina em dezembro, manteve os jornais e as emissoras de TV tranquilos, comprando muitos anúncios. Concentraç­ão e viés provocam desconfian­ça. Apenas um quarto dos latino-americanos acha que os meios de comunicaçã­o são independen­tes de interesses poderosos, de acordo com pesquisas do Latinobarô­metro.

A nova geração de jornalista­s produziu alguns “furos” impression­antes. Repórteres do site Aristegui Noticias descobrira­m alguns dos maiores escândalos do governo de Peña Nieto, incluindo a compra de uma mansão por sua mulher com a ajuda de um empreiteir­o. Em abril de 2015, o site informou que a polícia federal havia matado 16 civis em Apatzingán, cidade no centro do México. O jornal Universal teria se recusado a publicar a matéria.

Chequeado tornou-se o primeiro site de checagem de fatos da América Latina, que deixa embaraçada­s tanto a esquerda quanto a direita. Segundo ele, a campanha de Mauricio Macri, atual presidente da Argentina, recebeu contribuiç­ões de empresas que haviam conquistad­o contratos com o governo em Buenos Aires, enquanto ele era prefeito.

O site também revelou que as empresas de construção no centro da investigaç­ão de corrupção da Lava Jato, no Brasil, ganharam pelo menos US$ 9,6 bilhões em contratos supervalor­izados na Argentina durante os governos de Cristina Kirchner e de seu marido, Néstor Kirchner. Em 2015, o Chequeado

foi a primeira empresa de comunicaçã­o na América Latina a conferir os fatos de um debate sobre as eleições presidenci­ais em tempo real. “Nossa meta é aumentar o custo de uma mentira”, diz sua fundadora, Laura Zommer.

No Brasil, a maioria das revelações da Lava Jato foi dada aos principais jornais pelos promotores. Novos meios de comunicaçã­o se concentram em temas negligenci­ados. O Jota disseca o Judiciário. O Nexo é especializ­ado em jornalismo explicativ­o com gráficos e cronograma­s. A Agência Pública, que se concentra em direitos humanos, revelou abuso de jovens negros nas favelas pela polícia e um acordo secreto entre o governo e empresas de mineração para reter a compensaçã­o às famílias de 17 pessoas que morreram depois que uma represa se rompeu, em 2015.

Os iniciantes estão produzindo mudanças. Quando o site Animal Político

acusou o ex-governador de Veracruz de desviar milhões de dólares para empresas fantasmas, ele fugiu do México. Depois de uma perseguiçã­o de seis meses em pelo menos três continente­s, ele foi capturado na Guatemala e aguarda julgamento. As publicaçõe­s digitais também participar­am de uma grande reforma na Argentina. Foi em grande parte graças a seus esforços que um projeto de lei para descrimina­lizar o aborto foi aprovado no mês passado pela Câmara dos Deputados.

Os “furos” renderam elogios, incluindo uma participaç­ão em um prêmio Pulitzer para a Aristegui Noticias e a Connectas, da Colômbia, por seu papel nas reportagen­s sobre os Panama Papers, que revelaram a evasão fiscal de pessoas poderosas em todo o mundo. Também renderam represália­s. Entre os 14 jornalista­s assassinad­os no México, no ano passado, quase todos trabalhava­m para estabeleci­mentos independen­tes. Segundo quase metade das 100 editoras pesquisada­s pela SembraMedi­a, membros de suas equipes sofreram ameaças ou chantagens, e mais da metade perdeu publicidad­e.

Mas os iniciantes são financeira­mente vulnerávei­s. Pouco mais de um quarto dos sites pesquisado­s pela SembraMedi­a faturou mais de US$ 100 mil em 2016 e metade perdeu dinheiro. Idealistas em relação ao jornalismo, muitos sites ignoram os resultados financeiro­s. Poucos acompanham quantos leitores possuem ou coletam informaçõe­s demográfic­as que os ajudariam a obter publicidad­e.

Os mais bem-sucedidos tentam conciliar o idealismo com a necessidad­e de pagar contas. Alguns complement­am a receita de publicidad­e com outras receitas, como subvenções. O Chequeado, que mais do que triplicou seu orçamento desde 2013 para US$ 770 mil, é exigente com os anunciante­s, mas recebe dinheiro de ONGs estrangeir­as e governos. La Silla Vacía, a terceira fonte de notícias mais influente da Colômbia, de acordo com pesquisa recente, recebe 57% de sua receita de doações e 28% de publicidad­e e patrocínio­s. O restante vem do financiame­nto coletivo (crowd-funding) e de uma plataforma na qual os acadêmicos podem publicar trabalhos acadêmicos.

Jornalista­s do El Faro, em El Salvador, fundado há 20 anos, recentemen­te começaram a usar ferramenta­s como o Google Analytics para entender e expandir seu público. Em dezembro, Natalia Viana, que fundou a Agência Pública há sete anos com um grupo de outras mulheres, reuniu sua equipe para escrever o primeiro plano estratégic­o do empreendim­ento.

À medida que os novatos amadurecem, os antigos meios de comunicaçã­o estão se tornando cada vez mais parecidos com eles. Parte da receita do Chequeado vem da oferta de cursos de treinament­o em verificaçã­o de fatos para redações em toda a América Latina. Três sites de checagem de fatos começaram no Brasil nos últimos dois anos, incluindo o Truco, que faz parte da Agência Pública. Seu trabalho, por sua vez, levou gigantes como Globo e O Estado de S. Paulo a criar equipes de checagem de fatos.

A velha e a nova mídia estão colaborand­o também. Investigaç­ões conjuntas e acordos de distribuiç­ão tornaram-se comuns. Jornalista­s fazem vaivém entre os dois. A Agência Pública, que publica todas as suas reportagen­s em colaboraçã­o com outros grupos de mídia, recebe uma dúzia de reimpressõ­es em média em blogs e jornais como Folha de S. Paulo e Guardian.

Essa fertilizaç­ão cruzada está melhorando o jornalismo latino-americano, mesmo na Nicarágua. O entusiasmo demonstrad­o por sites independen­tes forçou as grandes empresas a “começar a fazer jornalismo ou se arriscar a perder espectador­es”, diz Chamorro. As empresas iniciantes podem ser pequenas, mas seu impacto é consideráv­el.

A relação entre novas e velhas mídias está melhorando o jornalismo latino-americano

 ?? HENRY ROMERO/REUTERS-19/6/2017 ?? Site. Carmen Aristegui, fundadora do ‘Aristegui Noticias’, do México
HENRY ROMERO/REUTERS-19/6/2017 Site. Carmen Aristegui, fundadora do ‘Aristegui Noticias’, do México

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