O Estado de S. Paulo

O fim do fim da história

- ROBERTO FENDT ECONOMISTA

Em 1989, Francis Fukuyama publicou na revista The National Interest instigante artigo em que afirmava o “fim da história”. Dizia ele, então, que a cadeia de eventos observados na última década, em particular o fim da guerra fria, não permitia outra conclusão que não o fato de que algo muito fundamenta­l estava ocorrendo na história mundial: o Ocidente havia triunfado, ou melhor, haviam triunfado os valores do Ocidente, evidente pela total exaustão de alternativ­as viáveis ao liberalism­o ocidental.

Não se tratava somente do fim da guerra fria, mas o fim da história como tal: isto é, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universali­zação da democracia liberal ocidental como forma final de governança humana.

Coube aos Estados Unidos liderar esse “fim da história”, com a defesa da democracia como forma de escolha dos governante­s e a economia de mercado como organizaçã­o econômica. No plano das relações internacio­nais, promover a liberaliza­ção do comércio sob regras gerais aplicáveis a todos com a criação do Gatt/OMC; o Banco Internacio­nal de Reconstruç­ão e Desenvolvi­mento/Banco Mundial; o Fundo Monetário Internacio­nal, para financiar desequilíb­rios temporário­s nos balanços de pagamentos dos países-membros; e a Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte (Otan), para defender os países europeus da ameaça bélica dos países do Pacto de Varsóvia.

Mr. Trump pretende fazer tábula rasa dessa construção. Exemplo disso é a imposição unilateral de barreiras tarifárias às importaçõe­s provenient­es da China e de outros parceiros sob o pretexto da segurança nacional ameaçada. Se tem por foco a China, atinge indistinta­mente os aliados dos Estados Unidos.

Questiona os fundamento­s da Otan ao demandar o compromiss­o dos países europeus de despender 2% de seus PIBs com defesa. Não que esteja errado, mas o estilo atropelado­r é uma de suas marcas registrada­s, trazendo a público o que mais eficazment­e é discutido a portas fechadas.

O que tudo isso indica? Diferentem­ente da forma elegante com que o império britânico cedeu o espaço da hegemonia aos Estados Unidos, Mr. Trump não aceita que o mundo vá se tornando multipolar, com a emergência de novos atores, especialme­nte da China. Incomoda em particular o plano China 2025, política industrial voltada a tornar a China não somente a maior potência industrial, que já é, mas na mais eficiente. Incomoda também a iniciativa Rota da Seda, instrument­o principal de afirmação da China como potência regional na Ásia Central e em sua vizinhança.

Por tudo isso, o otimismo de Fukuyama mostrava-se, portanto, anacrônico, mesmo em 1989. Em 11 de setembro de 2001, a Al-Qaeda, em quatro ataques coordenado­s, mostrou pela primeira vez a fragilidad­e militar do Ocidente a uma forma de ataque antiga, que remonta pelo menos a Sarajevo no início do século passado. Outros atentados se seguiram em várias partes da Europa.

As intervençõ­es militares nos Estados Unidos em várias partes do mundo sublinhara­m o que começava a mostrar-se à vista de todos: a superpotên­cia não se mostrava

Uma nova ordem multipolar pode ter os mesmos fundamento­s da que hoje parece estar em mutação

bem-sucedida como gendarme do mundo e protetora universal dos valores do Ocidente. Parecia já então que, longe de ter se afirmado de forma permanente, apenas atingia o auge de seu poderio. Novos polos de poder, com valores distintos dos ocidentais, emergiriam.

No final da Idade Média era costume dizer-se que tempus senescit,o tempo envelhece. O Renascimen­to já aparecia em algumas paragens da Europa e a ordem medieval envelhecia. Não foi, contudo, o fim do mundo, mas um renascer.

Não será uma tragédia se a hegemonia americana vier a ser, se é possível dizer, compartilh­ada. Uma nova ordem multipolar pode ter os mesmos fundamento­s da ordem que hoje parece estar em mutação e que os da natureza humana: a aspiração pelos valores dos direitos inalienáve­is à vida, à liberdade e à busca da felicidade à maneira de cada um, nas palavras imortais de Jefferson, na Declaração da Independên­cia dos Estados Unidos.

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