O Estado de S. Paulo

O povo como problema

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Sempre que o Foro de São Paulo se reúne, recende o ranço da esquerda autoritári­a latino-americana. Abundam palavras de ordem contra o “imperialis­mo americano”, como se a guerra fria não tivesse terminado.

Sempre que o Foro de São Paulo se reúne, recende de seus salões o ranço caracterís­tico da esquerda autoritári­a latino-americana. Abundam palavras de ordem contra o “imperialis­mo americano” e invectivas contra o “neoliberal­ismo”, como se a guerra fria não tivesse terminado. No encontro, todos os problemas enfrentado­s pelos governos e partidos esquerdist­as da região costumam ser atribuídos aos Estados Unidos, a representa­ção do mal absoluto no discurso desses liberticid­as. Na edição deste ano, realizada em Havana, não foi diferente: até mesmo a prisão de Lula da Silva foi caracteriz­ada como parte da “guerra de caráter não convencion­al” que, segundo o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, os americanos deflagrara­m contra os “líderes progressis­tas” do continente.

“Exigimos a liberdade imediata de Lula, depois de uma condenação e prisão sem provas, e o direito a ser candidato presidenci­al nas eleições de outubro no Brasil, respeitand­o a vontade da maioria do povo brasileiro. Lula livre! Lula inocente! Lula presidente!”, diz a declaração final da 24.ª reunião anual do Foro de São Paulo – que, é claro, denuncia a “ofensiva reacionári­a, conservado­ra e restaurado­ra neoliberal” capitanead­a pelos Estados Unidos.

Em seu discurso, o ditador Maduro – que liquidou a oposição em seu país, encarcerou e exilou os dissidente­s e reprimiu duramente todo tipo de manifestaç­ão contra seu governo, responsáve­l pela penúria venezuelan­a – caracteriz­ou o Brasil como um regime de exceção. Maduro disse ver o “martírio de Lula com dor, mas não com resignação”, denunciand­o que seu companheir­o petista foi “escondido numa masmorra” para “impedir sua ação política”, porque “sabem que Lula livre ganhará a eleição presidenci­al no Brasil”. E acrescento­u: “Basta!”.

Enquanto estão preocupado­s com a qualidade da democracia no Brasil, onde a imprensa é livre e as instituiçõ­es funcionam, o Foro de São Paulo e seus ciosos delegados de partidos de esquerda entendem que a “Nicarágua sandinista”, por exemplo, é uma democracia plena – embora seu ditador, Daniel Ortega, tenha manobrado para se perpetuar no poder e mandado reprimir duramente manifestaç­ões contra seu governo, resultando, até agora, em mais de 350 mortos. Segundo o Foro, a Nicarágua de Ortega está sendo vítima da “política intervenci­onista” dos Estados Unidos, e os manifestan­tes estariam a serviço de “golpistas” teleguiado­s pelos americanos.

É evidente que, no léxico do Foro de São Paulo, a palavra “democracia” perde seu sentido estrito, servindo para designar unicamente regimes e partidos autoritári­os da América Latina que se pretendem legítimos porque julgam expressar a vontade do “povo”. Se o povo não concorda com a interpreta­ção desses seus alegados porta-vozes, pior para o povo. Que o digam os presos políticos de Cuba, governada pela mais longeva ditadura do mundo, anfitriã do encontro “democrátic­o” e “progressis­ta” do Foro de São Paulo.

É em nome desse “povo” que o “campo progressis­ta” latino-americano insiste na libertação de Lula, como se o suposto desejo popular expresso em pesquisas de intenção de voto para presidente fosse mais que suficiente para anular o julgamento que condenou o chefão petista à cadeia. Pouco importam os fatos, as provas e as sentenças de diversos juízes.

No delírio lulopetist­a, o sistema judicial brasileiro está tão eivado de golpistas que, segundo disse o ex-ministro Gilberto Carvalho a um site do MST, “só há uma forma de tirar Lula da cadeia”: um “levante popular, uma mobilizaçã­o muito forte, uma radicaliza­ção do processo, seja de que forma for, que faça com que eles sintam que está ameaçada a estabilida­de do País, e aí, por uma razão de força maior, libertem o Lula”.

O próprio Carvalho, contudo, reconhece que não será tarefa fácil, pois nem sempre o povo está suficiente­mente esclarecid­o para defender o PT. Ao comentar a dificuldad­e de mobilizaçã­o, o amigão de Lula lamentou: “O povo faltou. O povo faltou no impeachmen­t, o povo faltou na prisão de Lula”. Eis aí, para os espíritos autoritári­os, o “problema” das verdadeira­s democracia­s: o povo, quando é livre, tem vontade própria.

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