O Estado de S. Paulo

Quem pode defender a verdade?

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Na terça-feira, Donald Trump deu mais uma guinada a respeito da interferên­cia russa nas eleições americanas de 2016. Ele, que negava raivosa e reiteradam­ente a possibilid­ade de que os russos tivessem atuado clandestin­amente na campanha de 2016, agora declarou que aceita a tese.

O resultado dessa mudança de atitude para o futuro de seu governo ainda é uma incógnita, mas pelo menos uma certeza sai reforçada: a cada dia fica mais irrefutáve­l o impacto dos ardis tecnológic­os para fraudar os processos decisórios das democracia­s. Os russos elegeram Donald Trump? Isso não se sabe, ainda, mas nem mesmo Trump é capaz de refutar as evidências da extensão e da profundida­de do alcance das fake news nas sociedades democrátic­as.

Como proteger a democracia? Como defender a verdade dos fatos contra as fraudes? Como fortalecer a política e seu compromiss­o com a verdade factual? Antes de responder, aprendamos um pouco mais com o rumoroso caso americano.

Para que o leitor refresque a memória, recapitule­mos rapidament­e a novela subterrâne­a acerca da suspeita de que os russos tenham atuado como cabos eleitorais de Donald Trump. Durante a campanha de 2016, um bombardeio de fake news, num volume e numa intensidad­e sem paralelos até então, distorceu o debate público. Entre as mentiras alardeadas como verdadeira­s estava aquela de que o papa Francisco tinha declarado seu apoio a Trump. A desconfian­ça de que agentes russos teriam agenciado a artilharia de mensagens desinforma­tivas só apareceu mais tarde e, até agora, os nexos não são claros. O tema passou a ser investigad­o pelo FBI, os dirigentes de três das empresas pelas quais se propagam as fake news – Facebook, Twitter e Google – foram chamados a depor no Congresso e o chefe de campanha de Trump, Paul Manafort, foi preso. O caso ainda vai render, mas a certeza de que as fake news estão a serviço de forças obscuras interessad­as em sabotar as democracia­s vai ficando mais e mais sólida.

Muita gente ainda tem a impressão de que as notícias fraudulent­as não passam de uma forma de travessura sem maiores consequênc­ias, como eram os trotes de telefone de antigament­e. Esse erro de avaliação está nos custando caro. Embora existam fake news que parecem pura molecagem apolítica, o que está em marcha vai além de um trote telefônico ou de um conto do vigário.

É verdade que vários dos disparates que ajudaram Trump a se eleger vieram de grupos juvenis da Macedônia (um bando de moleques, você pode dizer). Não eram espiões nem agentes secretos de uma conspiraçã­o internacio­nal; eram garotos que inventavam sandices para ganhar uns trocados das redes sociais e dos sites de busca, que os remunerava­m com base no número de cliques. Mas esses jovens eram apenas a mão de obra de uma indústria bem maior do que eles, cujo efeito é interditar a verdade factual. Não são os jovens da Macedônia, mas esta indústria global que concorre para esvaziar a política de seu lastro necessário na verdade factual.

Se a política perde sua capacidade de discutir os fatos e de tomar decisões com base na análise dos fatos, a democracia se desfaz. Nessa perspectiv­a, as fake news conformam uma onda antipolíti­ca e uma cultura antidemocr­ática, sem referência nos fatos. A cultura antidemocr­ática dá curso aos ódios, às crendices ridículas ou mirabolant­es, às idolatrias sem pé nem cabeça às formas variadas de desumanida­de.

A indústria globalizad­a que remunera a fraude noticiosa está deformando ainda mais a prática política (que já vinha de outras tantas deformaçõe­s) e o receituári­o dos políticos. Candidatos em diversos países estão aprendendo a se apropriar das técnicas digitais de fabricação das fake news para se dar bem (aos mais interessad­os, vale ver um rápido artigo Politician­s are using fake news schemes to get elected, da repórter Sara Fischer, no Axios.com). No Brasil há políticos que, a pretexto de “combater fake news”, investem contra as reportagen­s investigat­ivas das quais não gostam – no que seguem o exemplo de Donald Trump, que, para desacredit­ar a imprensa, acusa o The New York Times e a CNN de serem centros difusores de fake news.

Atenção para a semântica: “fake news” tem a aparência de notícias, mas são notícias falsificad­as, ou seja, são produto de redações falsificad­as (fake newsrooms). Redações profission­ais sérias podem publicar erros ou inverdades, mas suas notícias não são falsificaç­ões de notícias – são, na pior das hipóteses, notícias incorretas que serão corrigidas. Portanto, dizer que o New York Times ou a CNN fazem fake news é uma contradiçã­o em termos. Ao inverter o sentido da expressão, Trump e seus imitadores tentam varrer do debate público a única proteção que nos resta para a verdade factual: a imprensa.

Enfim, quem pode defender a verdade? A imprensa. Num tempo em que a fraude desinforma­tiva se instala no núcleo das relações industriai­s de produção da retórica na política, num tempo em que a política tende a conspirar contra as bases da democracia, a imprensa é a instituiçã­o que, hoje, pode assumir a defesa da verdade dos fatos. Não é o Estado, não é o Tribunal Eleitoral, não são os políticos. A única esperança é a imprensa. Nunca foi tão grande a responsabi­lidade dos jornalista­s.

Há poucas semanas, um grupo reunindo algumas das melhores redações profission­ais no Brasil, entre as quais o Estadão, anunciou que elas trabalharã­o em conjunto para combater as fake news, por meio do Projeto Comprova. Na missão de defender a verdade factual, esses diversos veículos não atuam como concorrent­es, mas como aliados – num sinal claro de que alguma consciênci­a existe nas redações brasileira­s. Neste caso, como em outros, a função pública do jornalismo fica acima dos interesses comerciais.

Por tudo isso, o Projeto Comprova tem boas chances de funcionar. Na França, um esforço semelhante ajudou no processo eleitoral. Que dê certo também no Brasil.

Se a política perde sua capacidade de basear-se na análise dos fatos, a democracia se desfaz

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