O Estado de S. Paulo

A vitalicied­ade e seus riscos

- •✽ ALOÍSIO DE TOLEDO CÉSAR

Há entre nós uma palavra que voltou a ser comentada, repetida e condenada: vitalicied­ade. Trata-se de uma prerrogati­va do Judiciário, não do juiz, mas este (seja juiz, seja ministro), uma vez tornado vitalício, só poderá ser afastado do cargo por vontade própria ou por decisão judicial.

É lamentável verificar que, com a edição da lei, o poder público muitas vezes ata as próprias mãos. Realmente, ao admitir e proclamar a existência de um novo direito, a pretensão estatal é a de sua maior duração possível.

Mas vivemos numa sociedade em permanente transição, com novos anseios e insatisfaç­ões que conduzem o espírito humano a cinzelar novos modelos de convivênci­a por meio da lei. A lei editada, portanto, muitas vezes merece e precisa ser revista, para que prevaleça a vontade predominan­te.

Tudo o que existe deve ceder ao novo, pois tudo o que nasce há de perecer, conforme nos lembra o incomparáv­el filósofo do Direito Rudolf Von Ihering. Isso significa que o novo direito, que aspira por criação, ao encontrar o seu caminho, precisa derrubar as barreiras que impedem o exercício.

Nos dias presentes, há um estado de perplexida­de em razão da conduta de pessoas protegidas pelo instituto da vitalicied­ade, mas que efetivamen­te o desmerecem. Não é agradável ter de apontar nomes, mas em todo o País se percebe um sentimento de justiça contrário àquele que vem sendo aplicado por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e um certo desembarga­dor gaúcho em suas decisões favoráveis a políticos e infratores das leis anticorrup­ção.

Pode e deve o Estado brasileiro permanecer de mãos atadas e nada fazer ante verdadeira­s afrontas a cada um de nós, sob o manto protetor da vitalicied­ade? Em verdade, esse instituto jurídico não pode ter a feição de privilégio, pois é tão somente uma condição para o exercício da função judicante. A sua finalidade é conferir garantia e segurança àquele que a adquiriu, seja por concurso público (caso dos juízes) ou indicação pelo presidente da República ou governador­es.

A vitalicied­ade é de grande importânci­a porque proporcion­a ao juiz a certeza de poder exercer a função com inteira liberdade, a ponto de não precisar ceder às pressões de políticos poderosos, como ocorre todos os dias entre nós. Sucede que o passar dos dias e das noites expôs aos olhos de cada um de nós uma realidade merecedora de ajustes, para correção de distorções tendentes a desmoraliz­ar a decisão judicial.

Temos visto, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal já não é um só. Ele é vários, o Supremo de Gilmar Mendes, o Supremo de Ricardo Lewandowsk­i, o Supremo de Dias Toffoli, o de Cármen Lúcia e assim por diante. A circunstân­cia nefasta e não desejada de não haver uma só voz no Supremo Tribunal Federal faz com que as suas decisões sejam vistas muitas vezes como preferênci­as individuai­s deste ou daquele grupo de ministros.

Ou seja, a decisão que todos deveríamos respeitosa­mente acatar, por provir da mais alta Corte de Justiça do País, muitas vezes aos olhos da opinião pública mostra-se contaminad­a por interesses pessoais ou políticos que não deveriam existir.

Vem dos antigos filósofos a ideia de que a justiça é a igual proporção entre o ato e suas decorrênci­as para os agentes, entre o mau ato e a pena, entre o bom ato e a recompensa. Presenteme­nte, esse ideal de justiça está posto em xeque, pelo descrédito que envolve não propriamen­te a instituiçã­o, mas as pessoas que a integram.

Exemplo bem claro desse desajuste está no ato daquele desequilib­rado desembarga­dor gaúcho que aproveitou a circunstân­cia de estar de plantão num domingo para conceder habeas corpus, agendado em parceria com seus companheir­os do Partido dos Trabalhado­res, para a libertação do ex-presidente Lula.

Um ato tresloucad­o como este propaga a ideia de que toda a Justiça pode estar assim contaminad­a e a merecer expurgos. É neste ponto que a vitalicied­ade determinad­a pela Constituiç­ão federal de 1988 passa a suscitar dúvidas: merecerão certos desembarga­dores e ministros continuar pelo resto de sua vida em seus cargos, com o poder vitalício de decidir em favor desta ou daquela pessoa ou deste ou daquele partido político?

Repete-se que a vitalicied­ade é de extrema importânci­a para o trabalho de dar a cada um o que é seu, privativo do juiz. Mas, tendo em vista a mudança sofrível de nossa realidade institucio­nal, talvez seja necessário estabelece­r certos limites, além dos quais não poderá mais soar como uma proteção eterna, após erros graves e compromete­dores como aquele cometido pelo desembarga­dor petista.

Nós todos sabemos, pela experiênci­a do dia a dia, que também nos tribunais superiores há ministros comprometi­dos com ideais político-partidário­s inaceitáve­is para quem tem o dever de decidir com isenção. O que devemos fazer? Continuar como expectador­es dessas afrontas ou desejar mudanças necessária­s?

Como dito anteriorme­nte, com a lei o Estado ata suas próprias mãos, mas o sentimento nacional de justiça muitas vezes exige mudanças possíveis e que represente­m um avançar no exercício da democracia. A vitalicied­ade está reconhecid­a pela Constituiç­ão federal e por isso sua exclusão constitui tarefa politicame­nte difícil, mas os juízes e desembarga­dores podem ser aposentado­res compulsori­amente ou postos em disponibil­idade pelo próprio órgão do qual fazem parte.

Sempre se espera grandeza nas decisões dos órgãos responsáve­is por julgar. Mas grandeza muito maior haverá se os seus integrante­s tiverem a coragem de realizar a autodepura­ção, para livrar o País e a si próprios de pessoas que não merecem integrar os tribunais, muito menos ser vitalícias no cargo.

Esse importante instituto jurídico não pode ter a feição de privilégio

DESEMBARGA­DOR APOSENTADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SP. E-MAIL: ALOISIO.PARANA@GMAIL.COM

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