O Estado de S. Paulo

Uma ode à estupidez

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Éinconcebí­vel que no rol de desafios da Nação esteja a volta de problemas com os quais já tivemos de lidar no passado, como a morte de crianças por sarampo, por exemplo.

O sistema brasileiro de vacinação pública é um oásis de eficiência e profission­alismo em meio à improdutiv­idade e ao descaso com o público que marcam boa parte dos serviços prestados pelo Estado aos cidadãos. Segundo dados do Ministério da Saúde (MS), a cada ano são aplicados, gratuitame­nte, cerca de 300 milhões de doses de 25 diferentes tipos de imunobioló­gicos em 36 mil salas de vacinação espalhadas por todo o País.

De acordo com a Organizaçã­o Pan-Americana da Saúde (Opas), o Brasil é referência mundial em fabricação de vacinas, produzidas aqui pelo Instituto Butantan e pela Fundação Oswaldo Cruz. A autossufic­iência do País permite a exportação de doses para 70 países, grande parte na África.

Pois bem. A despeito da importânci­a da vacinação para a prevenção e controle de epidemias e da excelência do serviço que vem sendo oferecido à população, o País vai na contramão da tendência mundial que aponta para o cresciment­o do número de crianças vacinadas. Relatório recente divulgado pelo Unicef e pela Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS), com base em dados do Ministério da Saúde, mostrou que a cobertura nacional da vacina tríplice viral – contra sarampo, caxumba e rubéola – caiu de um porcentual bem próximo de 100% em 2014 para 85% no ano passado.

Outro caso preocupant­e é o da poliomieli­te, doença que foi considerad­a erradicada no País há quase 30 anos. Em 2015, 95% das crianças brasileira­s estavam imunes à poliomieli­te. Em 2016, o porcentual caiu para 84,4%, chegando a apenas 78,5% no ano passado. Há duas semanas, o Ministério da Saúde emitiu um alerta para o risco de um novo surto de poliomieli­te em localidade­s com cobertura vacinal abaixo dos 95%. É o caso de 312 municípios, especialme­nte na Bahia, Estado onde a vacina contra a doença cobre menos de 50% da população-alvo.

É inconcebív­el que no rol de desafios que se alinham diante da Nação esteja a volta de problemas com os quais já tivemos de lidar no passado, e com relativo sucesso. Já não há mais espaço em nossa arca de infortúnio­s – que não são poucos ou triviais – para a morte de crianças por sarampo, por exemplo, ou para a paralisia que pode ser causada pela poliomieli­te.

O sinal amarelo deve servir para o governo federal avaliar o que pode ser melhorado no que concerne à comunicaçã­o oficial com a população e, se for o caso, na capilarida­de da oferta de vacinas, fazendo-as chegar a mais pessoas. Em nota, o Ministério da Saúde informou que “tem atuado fortemente na disseminaç­ão de informaçõe­s junto à sociedade alertando sobretudo sobre os riscos de baixas coberturas”. A queda do número de crianças vacinadas com menos de 5 anos, ainda de acordo com o documento, “é a principal preocupaçã­o da pasta no momento”.

Mas a responsabi­lidade por este triste retrocesso também recai, em grande medida, sobre os pais e responsáve­is pelos menores. Por mais absurdo que possa parecer, cresce no País uma espécie de “Revolta da Vacina moderna”, com base em “novos estudos” que indicariam – pasme o leitor – os “riscos” a que as crianças estariam submetidas caso fossem vacinadas.

A ode à estupidez é turbinada pelas redes sociais, terreno fértil para o florescime­nto de informaçõe­s falsas e teorias conspirati­vas que seriam tão somente ridículas se não pusessem sob risco de morte milhares de crianças, incluindo os filhos de pais ciosos de suas obrigações. Ao não vacinarem seus filhos, os pais põem em risco todo o sistema de saúde pública.

Uma das fake news que circulam no meio digital dá conta de que a vacina tríplice viral causaria autismo. A “tese” é sustentada por um “estudo” de 1998 elaborado por um médico do Reino Unido, mais interessad­o em ganhar dinheiro do que em produzir ciência. A “falsificaç­ão elaborada” foi revelada por artigo publicado no British Medical Journal em 2011, mas ainda produz efeitos em mentes doentias.

Enquanto não houver vacina contra a insensatez, resta-nos valorizar e amplificar, seja como órgãos de imprensa, seja como cidadãos, o alcance da boa informação. Há vidas que dependem fundamenta­lmente disso.

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