O Estado de S. Paulo

Profecias e premoniçõe­s não são inofensiva­s

- BOLÍVAR LAMOUNIER

Que o mundo inteiro está imerso em dificuldad­es é óbvio. E é também óbvio que, por toda parte, as democracia­s são impactadas de forma negativa por tal situação. Mas daí a dizer que os regimes democrátic­os estão com um pé na cova vai uma larga distância.

As principais publicaçõe­s do Primeiro Mundo têm discutido tais impactos com bastante frequência. A discussão é importante, mas não é isenta de riscos. A maioria delas toma os cuidados necessário­s, mas algumas às vezes resvalam para aquilo que os americanos chamam de self-fulfilling prophecies (profecias que se autorreali­zam). Ou, se preferem, para o risco de jogar fora o bebê com a água do banho. Pior ainda é quando, imaginando possíveis sucedâneos para democracia­s supostamen­te defuntas, os analistas contrapõem modelos baseados em “ativismos populares” supostamen­te calorosos e espontâneo­s à suposta frieza ou ao “mero formalismo” institucio­nal da tradição democrátic­a ocidental.

Dias atrás a newsletter da Internatio­nal IDEA, uma ONG séria, sediada em Estocolmo, adotou uma linha que em geral me causa certa urticária. Título:

The vote is no longer enough (o voto já não é suficiente). Mas quem disse que o voto é ou algum dia foi “suficiente”? Neste artigo, com todo respeito à intenção sem dúvida louvável da referida organizaçã­o, vou tentar pôr alguns pingos nos is.

É correto, corretíssi­mo, dizer que eleições são uma condição

sine qua non da democracia. São uma condição absolutame­nte necessária. Mas não me consta que algum teórico sério desse regime tenha jamais afirmado que é uma condição também suficiente. E precisamos ir mais longe. Quando dizemos que eleições são uma condição suficiente, é essencial esclarecer em que sentido fazemos tal afirmação. Sim, o pilar fundamenta­l da democracia são eleições periódicas, limpas e livres, nas quais a maioria da população adulta tenha o direito de participar. Eleições “limpas” significam que os pleitos não podem ser vulnerávei­s à fraude numa escala capaz de distorcer os resultados. Eleições “livres”, que nenhuma ameaça pese sobre os eleitores no momento em que comparecem às urnas, ou seja, que eles estejam livres da coação e da coerção em qualquer de suas formas. Essa condição coloca o regime venezuelan­o do sr. Maduro e o nicaraguen­se do sr. Ortega a anos-luz da democracia. Dito de outro modo, o processo eleitoral da democracia pressupõe um extenso desenvolvi­mento da legislação e que esta seja aplicada por instituiçõ­es neutras, fortes e idôneas. Este enunciado pareceme suficiente­mente claro, mas com certeza não é completo. Onde não exista uma imprensa livre e pluralista, é óbvio que ele soa incompleto. Em certos países, governos implantam programas sociais em tese salutares, que em tese nada têm de ilegal, mas podem fazê-lo de forma maliciosa, com vistas à auferir dividendos eleitorais num grau que se podia compreende­r cem anos atrás, mas não nos dias que correm. Outra condição sine qua non, associada ao processo eleitoral, é que os contendore­s reconheçam sua mútua legitimida­de e reconheçam as eleições como a única via legítima de acesso ao poder.

E o que dizer do transcurso dos mandatos, quando os eleitos, devidament­e empossados, começam a pôr em prática suas plataforma­s eleitorais? Neste aspecto, as questões cruciais são a dos “objetos de decisão” – quero dizer, sobre que matérias a opção eleitoral faz realmente alguma diferença – e a transparên­cia, ou seja, quanto conhecimen­to o eleitor tem efetivamen­te a chance de se informar. Em qualquer democracia, na brasileira inclusive, a diferença entre o mundo atual e o de 50 ou cem anos atrás é imensa. Mas nosso atraso nesse aspecto pode ser medido pela dimensão amazônica das falcatruas cometidas na Petrobrás e pelo muito que continuamo­s a ignorar sobre a carteira de empréstimo­s do BNDES. O processo eleitoral avançou muito, mas o acesso à informação ficou para trás. A responsabi­lidade maior por tal atraso cabe ao Legislativ­o e aos partidos políticos, incrustado­s no casco do Estado, servindo mais à alta burocracia que à sociedade e virtualmen­te impotentes diante das corporaçõe­s (organizaçõ­es atreladas a interesses extremamen­te estreitos).

A terceira dimensão relevante é a da accountabi­lity – a possibilid­ade de efetivamen­te assegurar a probidade no trato da coisa pública, responsabi­lizando e punindo o servidor público que a infringe. Essa área tem registrado progressos palpáveis, graças principalm­ente ao combate à corrupção. Ainda que a Operação Lava Jato e a Polícia Federal tenham cometido alguns excessos, já podemos vislumbrar o dia em que o Brasil terá uma e não duas Justiças, como tem sido de nossa tradição. Nos últimos anos, vimos alguns grandes empresário­s e até um ex-presidente da República na prisão, algo até recentemen­te impensável e, a meu juízo, irreversív­el. O risco, evidenteme­nte, é a Justiça se deixar arrastar pelo clima do “pega, mata, esfola”. Ser rico ou ter sido delatado não torna o poderoso automatica­mente culpado de algo, mas a recíproca é verdadeira: esperar que criminosos de colarinho branco deixem confissões autenticad­as em cartório ou abram mão da infinidade de recursos que a Constituiç­ão de 1988 ainda lhes assegurou é algo que não veremos nem na brilhante democracia norueguesa. A pedra de toque, no caso, é o início do cumpriment­o da pena após a condenação em segunda instância, questão que tem contrapost­o o Supremo Tribunal Federal às duas primeiras instâncias de uma forma indesejáve­l e institucio­nalmente perigosa. Para bem servir ao interesse maior da sociedade, é essencial que todo o sistema de justiça se empenhe em informar quantos “3pês” (pobres, pretos e putas) ainda se encontram amontoados nas masmorras nacionais sem terem chegado sequer à segunda instância.

Não é isenta de riscos a discussão sobre os impactos que a democracia tem sofrido

CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A E AUTOR DE ‘LIBERAIS E ANTILIBERA­IS: A LUTA IDEOLÓGICA DE NOSSO TEMPO’ (COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)

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