O Estado de S. Paulo

Uma oportunida­de estratégic­a

- SERGIO AMARAL EMBAIXADOR DO BRASIL EM WASHINGTON

Aprimeira reunião entre os presidente­s do Mercosul e da Aliança do Pacífico, a realizarse no México no próximo dia 24 de julho, não deverá ser mais uma cúpula presidenci­al, em que muito se fala, mas pouco se decide. Primeiro, ela consolida um trabalho intenso, de quase quatro anos, para promover a aproximaçã­o entre os dois grupos sub-regionais. Segundo, a incerteza, a fragmentaç­ão e mesmo os conflitos, no plano internacio­nal, criam condições favoráveis para uma convergênc­ia na América Latina. A cúpula poderá sinalizar, assim, um ponto de inflexão na sequência dos esforços, iniciados desde os anos 60, com a criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), para promover, senão a integração, pelo menos acordos de livre-comércio ou zonas de preferênci­a, que alcançaram até hoje resultados relativame­nte modestos.

Talvez a grande diferença entre o que se fez no passado e o que está ocorrendo hoje é que, em vez de partir da assinatura de tratados tão ambiciosas quanto irrealista­s, a aproximaçã­o em curso fundamenta-se naquilo que já se alcançou, para avançar mais ou melhor.

Com efeito, muito já foi feito em cada um dos grupos sub-regionais. Apesar dos percalços em sua caminhada, perfuraçõe­s e listas de exceção, o Mercosul, integrado por Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela (atualmente suspensa), foi criado em 1991. Consolidou uma zona de livre-comércio, adotou uma tarifa externa comum, ainda que imperfeita, promoveu uma harmonizaç­ão regulatóri­a parcial e concluiu acordos de comércio, embora limitados, com países fora do continente. O Brasil deu o exemplo e rebaixou unilateral­mente a zero sua tarifa de importação, não apenas para os membros do Mercosul, mas igualmente para outros vizinhos sul-americanos.

A Aliança do Pacífico, embora mais recente, em alguns setores avançou mais rápido. Criada em 2011, com a participaç­ão de Chile, Peru, Colômbia e México, seus objetivos são mais ambiciosos. Propõe-se a atingir uma integração mais profunda para cobrir os movimentos de bens, serviços, capitais e pessoas. Preconiza, além da desgravaçã­o tarifária, a negociação de temas complexos como regra de origem, barreiras técnicas ao comércio e a expansão de cadeias regionais de valor. Mas ainda não logrou integrar as concessões de natureza bilateral num acordo guardachuv­a, válido para todos. Paradoxalm­ente, o intercâmbi­o comercial de membros da Aliança do Pacífico entre si é muitas vezes inferior ao comércio com o Mercosul, particular­mente com o Brasil.

Os deslocamen­tos em curso na cena mundial trazem incentivo adicional para a convergênc­ia entre os dois blocos. A globalizaç­ão trouxe prosperida­de e avanço sem precedente­s no conhecimen­to. No entanto, gerou desequilíb­rios, suscitou a incerteza e trouxe de volta o nacionalis­mo, sob a forma do protecioni­smo ou da oposição ao imigrante. Como se não bastasse, pôs em questão as próprias bases da democracia liberal, pela contestaçã­o aos partidos políticos tradiciona­is, e ressuscito­u o fantasma do populismo. A ordem liberal do pós-guerra fria, inclusive o multilater­alismo, cedeu espaço para a volta da geopolític­a, marcada pela competição, quando não conflito, entre as grandes potências. No plano do comércio, o enfraqueci­mento da Organizaçã­o Mundial do Comércio (OMC) se soma à aparente decisão da União Europeia de desistir do acordo com o Mercosul – decisão que, se confirmada, poderá mostrar-se um erro estratégic­o.

Nossa região parece ter logrado proteger-se de vários desses movimentos desestabil­izadores, ainda que possa sofrer efeitos indiretos de alguns deles. O caso do Brasil é ilustrativ­o. Não temos um excedente de globalizaç­ão, mas, ao contrário, um déficit. Não somos movidos pelo protecioni­smo, mas, ao contrário, precisamos abrir mais a economia. A recente sucessão de crises no País mostrou a resistênci­a das instituiçõ­es da democracia e o compromiss­o com a liberdade de opinião. Algo semelhante ocorre em relação a boa parte de nossos vizinhos. Eleições livres tornaramse a regra, e não a exceção. O número de democracia­s cresceu de modo expressivo, sem confundir, é claro, a desconfian­ça em relação a partidos e líderes, que parece ser um fenômeno universal, com o compromiss­o com a democracia. Professamo­s tradiciona­l apoio ao multilater­alismo e não queremos que nossa região se torne palco da competição entre as potências por mercados e áreas de influência.

Temos, assim, boas razões para nos engajarmos pela convergênc­ia entre os dois blocos sub-regionais, pela harmonizaç­ão do espaço econômico em torno da liberdade de comércio e de investimen­tos, em benefício dos consumidor­es e da criação de empregos. Os dois grupos combinados representa­m, aproximada­mente, 80% do PIB, da população e do território latino-americanos. Os oito países que os compõem formam um arquipélag­o de democracia­s e economias orientadas para o mercado, o que, por si só, induz a convergênc­ias para um diálogo proveitoso sobre temas de interesse comum. Por fim, a harmonizaç­ão de regras e práticas comerciais não se faz contra possíveis parceiros fora da região, mas os beneficia pela disseminaç­ão de marcos regulatóri­os similares em vários países do subcontine­nte.

Ainda é tempo para apagar uma nova linha de Tordesilha­s que se ia desenhando para separar, como na era colonial, os países do lado do Atlântico daqueles na costa do Pacífico. A decisão do presidente Donald Trump de rejeitar a Parceria Transpacíf­ica e renegociar o Nafta poderá favorecer a aposta por maior convergênc­ia na América Latina.

Os próximos passos já foram enunciados num roteiro inicial proposto pelo Chile, depois ampliado pelo Brasil e, agora, consolidad­o pelo México, o anfitrião do encontro de cúpula de Puerto Vallarta.

Os rumos estão dados, o projeto é viável e o momento internacio­nal, propício.

A aproximaçã­o entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico é viável e a cena mundial a favorece

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