O Estado de S. Paulo

Vertigem

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Hoje faz 60 anos que Um Corpo Que Cai (Vertigo) foi lançado no Brasil, um mês e meio depois de sua première em Los Angeles. Os brasileiro­s viram o filme antes do resto do mundo e nossos críticos retribuíra­m a deferência recepciona­ndo-o com um entusiasmo ausente das primeiras reações da crítica americana.

O máximo que a Academia de Hollywood lhe concedeu foram duas indicações menores: direção de arte e som. Premiações, só as que Hitchcock e James Stewart receberiam no Festival de San Sebastian, no segundo semestre de 1958. Aos poucos, os ventos mudaram de direção. Até que na última enquete decenal da revista Sight & Sound, com críticos dos cinco continente­s, Vertigo desbancou Cidadão Kane do topo da lista dos “melhores filmes de todos os tempos”.

Pouco menos de um ano antes de sua estreia aqui, Moniz Vianna, o oracular crítico do Correio da Manhã, encontrara-se com Hitchcock no set de filmagem de Vertigo, na Paramount. Babei de inveja ao ler o registro no jornal. Não vi Um Corpo Que Cai (boa tradução, diga-se) em sua primeira semana de exibição no Rio. Por quê?, não lembro. Acabaria descontand­o o retardo pela vida afora.

De repente, o filme sumiu do mercado. Brigas por direitos autorais. Em 1966 uma solitária cópia foi encontrada no depósito da Paramount do Rio, e na véspera de sua destruição (praxe após esgotado o prazo de cinco anos do certificad­o de Censura), organizou-se, no cinema Paissandu, uma solene e dominical despedida da obra maestra de Hitchcock. Não fazíamos ideia de quando a veríamos novamente.

Entre aquele velório e o lançamento da cópia restaurada do filme 30 anos depois, “inventei” o Tour Vertigo.

Setembro de 1971. Levado por Ana Lúcia e João Saboia a um giro de carro por São Francisco, ao avistar o Palácio da Legião de Honra, no Lincoln Park, pedi para tirar uma foto sentado nas escadas de acesso ao museu. “Era aqui que Kim Novak vinha ver o retrato de Carlota Valdez”, comentei com o casal amigo. A primeira locação de Vertigo me caíra no colo. As demais não seriam tão fáceis de localizar.

Anos depois, agências de turismo mapearam as locações, com ajuda de cinéfilos e da Paramount, e montaram seus próprios passeios pelos locais por onde Scottie (o obsessivo e órfico detetive encarnado por Stewart) seguiu, de carro e a pé, Madeleine Elster, a primeira personagem de Kim Novak.

De muita coisa só vestígios encontrei. E apenas 14 anos então me separavam das filmagens. Prédios haviam sido demolidos (o vitoriano Hotel McKittrick, na Gough Street, que Madeleine, “possuída” pelo fantasma de Carlota Valdez, costuma visitar, desaparece­ra em 1959), outros nunca existiram (a livraria Argosy, por exemplo) ou haviam mudado de nome (o Hotel York, na Sutter Street, onde Scottie encontra Judy Barton, a segunda personagem de Kim Novak, já se chamava Empire em 1971, e há tempos foi espertamen­te rebatizado de Vertigo).

O magazine Ransohoff’s ainda estava no 259 da Post Street, mas fecharia cinco anos depois; e agora abriga uma loja de malas Rimowa. A loja de flores Podestà Baldocchi (na Grant Avenue) parece que permanece no mesmo espaço, dando fundos para a Claude Lane, beco entre as ruas Sutter e Post.

A livraria Argosy foi inteiramen­te feita no estúdio, assim como quase todos os interiores, inclusive o do restaurant­e Ernie’s (Montgomery Street), fechado em 1996, meticulosa­mente recriado sob a supervisão do próprio Hitchcock, fiel freguês de sua refinada cozinha francesa. O majestoso prédio (Brockleban­k Apartments), de cujo estacionam­ento Madeleine sai todos os dias com o seu Jaguar, continua de pé na Mason Street, no alto de Nob Hill.

O prédio baixinho em que Scottie mora (900 Lombard Street, esquina com a Jones) foi relativame­nte fácil de localizar. Já fora habitado por uma francesa que não tinha noção da relíquia que alugara e depois por outra senhora que, também saturada do assédio de turistas abelhudos, mudou de endereço. Construíra­m uma casa no lugar.

A Missão Dolores, onde, no filme (e só no filme), fica o túmulo de Carlota, é a mais velha construção da cidade e, por isso mesmo, um dos pontos turísticos mais procurados de São Francisco. Já encontrar a outra missão, de cujo campanário caem os corpos de Madeleine e Judy, exigiu um bocado de ginástica e gasolina, por culpa, justamente, do seu campanário.

Tinha ideia de que a única missão espanhola dotada de campanário, naquela região, era a de Santa Barbara. Fui até lá, fiz algumas fotos, e dei o tour por encerrado. Só na década seguinte descobri ser outra a missão usada no filme, a de San Juan Bautista, a 140 km de São Francisco, que afinal visitei em 1993. Ainda sem campanário. A mostrada na tela é um desenho, um truque ou adendo cenográfic­o, bolado pelo cineasta para substituir a torre original da missão, destruída por um raio em 1940.

A missão é um barato, embora não tão charmosa quanto a de San Luis Obispo. Descobri recentemen­te que foi toda restaurada e ficou uma graça. Há oito anos ganhou um campanário igual ao do passado (e do filme), construído a pedido da filha do produtor Herbert Coleman. Primeiro a arte imitou a vida, depois a vida imitou a arte. Mais um caso de ressurreiç­ão ligado a Vertigo.

Ah, sim, o retrato de Carlota. Nunca existiu. Na Galeria 6 do Palácio da Legião de Honra encontrei o banco em que Madeleine se sentava para apreciá-lo mas as paredes tomadas por pinturas francesas e italianas do século 17. O quadro que vemos no filme foi pintado por John Ferren, o mesmo que dois anos antes pincelara os do pintor encarnado por John Forsythe em O Terceiro Tiro (The Trouble With Harry).

Em setembro de 1971, conheci a primeira locação de ‘Vertigo’, de Hitchcock, em São Francisco

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SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS ??
SÉRGIO AUGUSTO TWITTER: @SERGIUSAUG­USTUS SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS

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