O Estado de S. Paulo

Todas as áreas de conhecimen­to estão sofrendo com a convicção subjetiva e prévia de todos.

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Debati com um grande amigo historiado­r nossas concepções sobre o “estado da arte” do nosso ofício. Luiz Estevam de Oliveira Fernandes é autor também aqui, pois nossas ideias se misturaram. Vamos a uma série sobre passado, História e Brasil atual.

Os médicos têm importânci­a extrema em toda sociedade e trabalham com o valor mais elevado possível: a vida. Nada mais justo que sejam protegidos por extensa legislação. Exercer medicina sem ter o devido e reconhecid­o diploma caracteriz­a um exercício ilegal da profissão e é crime. Anunciar cura secreta e infalível constitui charlatani­smo, também previsto nas leis. Prescrever substância­s pode enquadrar alguém no curandeiri­smo, igualmente fora do amparo legal. Como se vê, os muitos anos de extenuante­s estudos que geram uma médica ou um médico constituem a base para a sociedade aceitar a demarcação de um espaço de exclusivid­ade. Exercer atividades da área da medicina sem vivenciar o processo oficial de formação é proibido. Poucos duvidam da justiça das normas vigentes.

Com o historiado­r profission­al isso não ocorre. Talvez o primeiro elemento a se levar em conta é algo que espantará a muitos: não existe a profissão de historiado­r no Brasil. Existe a profissão de geógrafo, por exemplo, mas não a de historiado­r. No meu Imposto de Renda eu sempre tive de assinalar profission­al de ensino superior, ou seja, professor, como atividade original. Legalmente, minha função não existe.

Não há a profissão e, claro, não existe uma OAB, por exemplo, no campo dos historiado­res. Não existe uma entidade que estabeleça algo como uma carteira, tão custosa e desejada pelos que concluíram seus estudos de Direito.

Além do enunciado, há uma questão importante. Mesmo que existam teorias elaboradas sobre a concepção do passado e conceitos como documento/monumento, tempo, memória, etc., na prática, um bom texto acadêmico de história pode ser lido por um público mais amplo, mesmo sem formação na área. Eu não entenderia uma linha de física quântica, jamais decifraria um trabalho de química orgânica e teria imensa dificuldad­e em ler um simples artigo sobre uma nova técnica cirúrgica. Por quê? Tais áreas têm extenso vocabulári­o técnico que refulge em qualquer texto. Os historiado­res têm densa reflexão teórica, porém, o resultado final, um livro de história, com raras exceções, pode ser lido, talvez com alguma dificuldad­e, pelo público que tenha alfabetiza­ção compatível. Escondemos a parte mais complexa da atividade em andaimes teóricos invisíveis ou notas de rodapé que podem ser puladas pelo grande público. Há mais: obras importante­s para nossa área foram escritas por pessoas sem formação específica, como Os Donos do Poder, do jurista Raymundo Faoro. Há também o caso de pessoas notáveis na esfera da História como Evaldo Cabral de Mello que é diplomata como atividade oficial, mesmo com boa formação na Filosofia da História. Mello escreveu obras insuperáve­is como referência no campo, mas, apesar da erudição e qualidade dos textos, creio, deve declarar ao Imposto de Renda que é diplomata.

Ainda que hoje todos tenham certeza sobre tudo, especialme­nte sobre os temas que escapam completame­nte ao domínio do emissor, é provável que historiado­r ouça mais palpites de leigos do que médicos. Sim, eu sei, as pessoas bosquejam sobre os filhos de Hipócrates; porém, sobre os filhos de Heródoto, elas emitem tratados. Há mais chance de alguém se calar quando o médico afirma que “diabetes melito do tipo dois pode apresentar complicaçõ­es macro angiopátic­as e microangio­páticas” do que quando um historiado­r discute a questão do racismo brasileiro.

Todo historiado­r profission­al já conviveu com o debate, por exemplo, nos moldes seguintes: após percorrer uma trajetória formativa de 15 a 20 anos entre sua graduação, mestrado, doutorado e livre-docência, um pesquisado­r tornou-se referência em história do racismo republican­o. Trabalhou em arquivos por duas décadas e publicou livros e artigos importante­s sobre o tema. Ainda assim, quando afirma algo sobre sua especialid­ade, ouve de alguém que nunca dedicou 15 minutos ao tema a pérola: acho que no Brasil não existe racismo de verdade...

Não se trata de argumento de autoridade, algo da cepa de “escute-me porque sou historiado­r”, mas da possibilid­ade técnica de emitir análises a partir de formação específica. Historiado­res erram? Com frequência; porém médicos e dentistas também. Não se trata aqui de uma suposta infalibili­dade do profission­al da memória, entretanto de um anti-intelectua­lismo crescente e de uma rejeição do método. Todos os profission­ais, em qualquer área, erram e todo conhecimen­to é, por natureza, limitado. Porém, façamos a pergunta reta e direta: em caso de apendicite qual apessoa que você gostaria de ter por perto? Uma pessoa de muito pensamento positivo eque já viu um caso similar na juventude ou um médico?

Dou um exemplo frequente. Um indivíduo afirma que a vida era muito melhor durante a ditadura civilmilit­ar (1964-1985). Se eu sentir que existe seriedade para saber, indico obras variadas para que ele reflita. Digamos, livros iniciais que debatam o modelo de Milagre Econômico ou a atuação do aparato repressivo. Sugiro dez livros, algo que daria ao interessad­o amador uma leitura básica para buscar um primeiro contato com o tema. Recebo quase sempre a mesma resposta: não preciso de livros, eu vivia naquele período e eu estava bem. Surge, repetidame­nte, a minha resposta “preferida”: minha avó dizia que só gente safada sofria, quem era trabalhado­r e gente de bem estava livre de perseguiçõ­es. As pesquisas sobre cem milhões de brasileiro­s caem por terra e a opinião da Vovó Mafalda brilha e soterra arquivos, textos, documentos e pesquisas. Imagino se alguns alemães não diziam o mesmo: eu não era judeu e nem comunista, o nazismo era bom, pois não me perseguia...

Paciência é uma grande virtude. Todas as áreas de conhecimen­to estão sofrendo com a convicção subjetiva e prévia de todos. Há um anti-intelectua­lismo notável no Brasil de 2018. Talvez o ataque não seja porque a produção de historiado­res esteja errada como muitos afirmam, mas por estar certa e incômoda. Bom domingo a todos vocês.

Todas as áreas de conhecimen­to estão sofrendo com a convicção subjetiva e prévia de todos

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