O Estado de S. Paulo

Democracia em crise

Para Manuel Castells, esquerda e direita colocam modelo em xeque.

- Caio Sartori

Para Manuel Castells, os movimentos, à esquerda ou à direita, na Venezuela ou na Hungria, colocam em xeque modelo democrátic­o

Cinco anos depois de um junho cujos sentidos permanecem em disputa, a ideia do “não me representa” domina o debate político global. Cada uma com suas particular­idades, as democracia­s vêm testando a capacidade de resistênci­a em meio a uma crise que parece distanciar o cidadão da política institucio­nal. É daí que surgem políticos e movimentos, à esquerda ou à direita, na Venezuela ou na Hungria, que colocam em xeque o modelo democrátic­o como o conhecemos.

Foram décadas de conquistas institucio­nais antes de chegarmos ao atual estágio de recessão democrátic­a – para usar o termo do cientista político americano Larry Diamond. A literatura sobre o tema, que vem se avolumando, ganha mais uma voz com o lançamento de Ruptura: A Crise da Democracia Liberal (Zahar), do sociólogo espanhol Manuel Castells. Na Espanha do autor, onde desde a redemocrat­ização nos anos 1970 a via institucio­nal vinha se consolidan­do, o turbilhão político tomou conta nos últimos anos – e culminou com a destituiçã­o do primeiro-ministro Mariano Rajoy no início de junho último.

Mas de que falamos quando citamos a democracia liberal? O autor elenca algumas caracterís­ticas: respeito aos direitos básicos e políticos dos cidadãos; separação de poderes; eleições livres e periódicas; submissão do Estado aos escolhidos pelo povo; não-influência de “poderes econômicos ou ideológico­s” na condução dos assuntos públicos por meio da cooptação do sistema político.

Quando, segundo Castells, esses princípios começam a erodir num cenário de crise econômica, institucio­nal, social e moral, a resignação se transforma em indignação. Tudo o que até então era aceito – afinal, o voto foi dado e a representa­ção, em tese, estava em curso – começa a desmoronar. Pode esse modelo de democracia liberal, em que o voto serve como guardião da representa­ção, se sustentar? Colocá-lo em xeque e se decepciona­r com suas limitações significa questionar a democracia em si?

São vários os exemplos mundo afora de países que disseram não ao modelo: a Hungria de Viktor Orban, que, entre outras medidas questionáv­eis, criminaliz­ou a ajuda aos imigrantes; a Polônia do Partido da Lei e da Justiça, onde 27 juízes da Suprema Corte foram afastados compulsori­amente pelo Executivo no início deste mês. Mas o melhor exemplo, porque simbólico, talvez seja o dos Estados Unidos, considerad­o o líder do “mundo livre”.

Castells se debruça sobre a eleição de Donald Trump em 2016 para compreende­r as origens da ira que nos fez chegar a este ponto. A globalizaç­ão, diz, “incita a buscar refúgio na nação”. Nação esta apresentad­a por novos atores políticos que se dizem diferentes, criticam a corrupção e apelam para um nacionalis­mo muitas vezes xenófobo, embalados pelo medo do terrorismo. Contra tudo o que está aí, prometem a ruptura.

É nessa questão, aponta o sociólogo espanhol, que as diferentes respostas à crise da democracia liberal convergem. A vitória de Trump, o Brexit no Reino Unido, a decomposiç­ão do sistema político francês. Mas há diferenças – e algumas respostas podem vir a melhorar o modelo democrátic­o.

Espanha.

Mais associado à esquerda, Castells destaca positivame­nte o que ocorreu na Espanha com o surgimento do movimento 15-M, que ocupou as ruas de Madrid de 2011 em diante e demandou uma ‘democracia real’. Foi dali que surgiu a base do Podemos, partido que impulsiono­u uma nova configuraç­ão do campo progressis­ta desde então – atualmente, compõe a base do novo primeiro-ministro, Pedro Sánchez, do tradiciona­l PSOE.

O sociólogo acusa a esquerda clássica espanhola (PSOE) de, ao longo da década passada, perder a capacidade de articulaçã­o dos interesses populares para além da institucio­nalidade – crítica parecida com a de quem acusa o governo Lula de cooptar os movimentos sociais. “A tão ansiada democracia se reduziu à partidocra­cia”, escreve.

Num cenário em que as diferenças entre o PSOE e a direita ficaram cada vez menos perceptíve­is, a crise econômica teve como subterfúgi­o a ajuda do Banco Central Europeu, cujas contrapart­idas costumam exigir o corte de gastos públicos. Foi ali, diz Castells, que a já existente crise de legitimida­de política se transformo­u em crise social, com o aumento do desemprego. Do vazio de credibilid­ade surgiu o clamor pela democracia real.

Num ano em que o mundo ainda busca os sentidos de um maio vivenciado há 50 primaveras, é possível entender o significad­o de eventos que tomaram as ruas há menos de dez anos? Castells faz uma leitura parecida com a mais recorrente em torno do maio de 1968: aquele 2011 recheado de utopias teria germinado os debates em torno da dignidade, da igualdade de gênero e, entre outras bandeiras, da “possibilid­ade de uma vida diferente, para além da burocracia e do mercado.” Causas que transcende­m a institucio­nalidade e preenchem com vida a nostalgia que costuma suceder grandes movimentos.

Castells respondeu a algumas perguntas feitas pelo Aliás sobre Brasil, Espanha e União Europeia:

• O senhor crê na possibilid­ade de candidatos de partidos sem muita capilarida­de venceram a eleição presidenci­al brasileira mesmo com o peso das máquinas partidária­s? Muitos apostam em uma queda gradual de Jair Bolsonaro e Marina Silva no decorrer da campanha.

As máquinas regionais são decisivas por sua capilarida­de e porque são a base do clientelis­mo e, portanto, da corrupção. Creio que tem razão quando diz que Bolsonaro irá cair – o poder econômico brasileiro não é aventureir­o. No entanto, a política tem sua lógica própria e uma campanha demagógica em plena confusão e com crise econômica pode causar uma hecatombe institucio­nal. O manifesto dos partidos de centro liderado por (Fernando Henrique) Cardoso é uma chamada de atenção ao perigo que representa Bolsonaro, e creio que pode ser um fator decisivo para deter a crise da institucio­nalidade.

Hoje, no Brasil, a grande questão não é esquerda ou direita, e sim partidos democrátic­os (ainda que corruptos) contra uma coalizão neoautorit­ária apoiada por grupos de interesses ideológico extremista­s internacio­nais.

• Apesar de toda a inovação do Podemos, quem volta ao poder enquanto esquerda na Espanha é o tradiciona­l PSOE. Quão influente é a existência do Podemos para o novo governo de Pedro Sánchez?

Há uma nova política na Espanha que surge do movimento 15-M. Não só o Podemos surge do 15-M, como Pedro Sánchez afirma se inspirar em muitos dos valores desse movimento. A aliança parlamenta­r entre PSOE e Podemos já é um feito e só mediante essa colaboraçã­o pode se desenrolar o novo projeto reformista e democrátic­o espanhol. Tudo depende de que nos anos até as eleições essa aliança possa aprovar políticas sociais progressis­tas a fim de se consolidar no poder por meio das eleições. Há uma convergênc­ia explícita entre Sánchez e Iglesias (líder do Podemos), algo semelhante ao que ocorre em Portugal, o país europeu que melhor funciona política e economicam­ente no momento. O grande problema segue sendo a Catalunha, difícil de resolver por causa do radicalism­o do presidente catalão e a utilização desse radicalism­o por parte do nacionalis­mo espanhol representa­do pelo partido Ciudadanos, cuja base de apoio se alimenta da oposição a Catalunha. Sánchez está tentando dialogar e conciliar, mas os nacionalis­mos dificultam.

• O sr. crê na possibilid­ade de Portugal e Espanha, que historicam­ente não têm muito peso na União Europeia, influencia­rem a política de Bruxelas por meio da negação da austeridad­e? Quão simbólica é a posse de Mário Centeno, o ministro das finanças portuguesa­s, como presidente do Eurogrupo?

Portugal está demonstran­do que uma política sem austeridad­e, mas com rigor fiscal, é mais adequada para o sul da Europa, e Centeno tem cada vez mais respeito entre seus colegas. Sánchez quer avançar nessa direção, mas agora precisa reformar as instituiçõ­es, corroídas pela corrupção sistêmica do PP. Até agora, Sánchez conseguiu formar uma aliança estratégic­a com Merkel e Macron para dar uma resposta humanitári­a conjunta à gravíssima crise dos refugiados, agravada pelo fascismo italiano. Em menos de um mês de governo, Sánchez mudou o clima político na Espanha, que é a quarta economia da União Europeia, e na Europa. Prepara-se uma confrontaç­ão com os regimes neofascist­as da Polônia, Hungria, República Checa, Áustria e Itália, os ‘bolsonaros’ europeus. Estamos em uma situação de emergência e Sánchez e António Costa (primeiro-ministro português), junto com Merkel e Macron, são a esperança da sobrevivên­cia dos valores democrátic­os na Europa.

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BRIAN SNYDER/REUTERS Trump. Apelo a um nacionalis­mo cada vez mais xenófobo num discurso antiglobal­ização
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JUAN MEDINA/REUTERS Sánchez. Presidente espanhol se inspira em valores do movimento M-15, diz Castells
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MARIT HOMMEDAL/NTB SCANPIX Castells. Sánchez, António Costa, Merkel e Macron são a esperança
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REUTERS/PAULO WHITAKER Bolsonaro. Sociólogo diz que ‘o poder econômico não é aventureir­o’

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