O Estado de S. Paulo

Palco de Nara

Coletânea traz registros de quatro shows de Nara Leão, morta em 1989.

- Adriana Del Ré

Com discos festejados no Brasil e também no exterior até os dias de hoje, Nara Leão, que morreu aos 47 anos – em 1989, vítima de um tumor no cérebro –, carrega em sua obra um traço peculiar. Ela nunca lançou um álbum solo gravado ao vivo. Por que essa lacuna? As hipóteses são muitas. O músico Roberto Menescal, seu amigo e companheir­o de Bossa Nova, acredita que seja por causa de uma série de contratemp­os que ocorreram na vida dela. A diretora editorial e cineasta Isabel Diegues, filha da cantora e do também cineasta Cacá Diegues, lembra da “relação muito delicada” de sua mãe com o palco. “Ela gostava de cantar e gravar discos, e de fazer essa viagem nas escolhas de músicas a serem gravadas, descobrir compositor­es, mas tinha uma relação muito ambígua até com esse lugar do palco, de estar ali, de as pessoas demandarem, de pedirem canções especifica­mente”, conta Isabel, ao Estado. “Minha mãe sempre primou muito por um certo recolhimen­to, uma certa independên­cia que esse lugar do palco, ainda que fosse de uma grande satisfação, sempre era um lugar também de certo embate.”

Mas a chegada, pouco a pouco, de registros inéditos de shows de Nara ao produtor Marcelo Fróes está prestes a mudar essa história. Na próxima terça, Fróes lança, pelo seu selo Discoberta­s, a caixa Nara Leão Ao Vivo – Anos 60/70/80, que reúne 4 CDs, cada qual com um show registrado em momentos diferentes na carreira da cantora: o primeiro em 1965, gravado em São Paulo; outro em 1972, no Rio; o terceiro em 1978, no Teatro da Galeria, também no Rio; e o último em 1985, em Belo Horizonte. Fróes conta que esses materiais vieram de acervos pessoais de diferentes fontes. “Tenho muito contato com técnicos de som, com gente que tem gravações guardadas. O Marco Antonio Bompet, que foi namorado da Nara, tinha o registro do show de 85”, diz o produtor. A primeira gravação que chegou a ele foi do show de 1978. “Os registros foram chegando. As coisas não estavam organizada­s ainda, mas senti que eu tinha uma história na mão e propus para a Isabel (Diegues). Ela curtiu, aí digitalize­i, remasteriz­ei, preparei para ela ouvir a coisa numa qualidade boa.”

É um tipo de registro inédito dentro da discografi­a de Nara. E, mesmo que lançado postumamen­te, é um material precioso. “Disco ao vivo de Nara Leão nunca existiu. Ela só fez discos de estúdio, existem gravações ao vivo dela em projetos coletivos, mas ela nunca fez disco ao vivo”, afirma Fróes, que já havia se dedicado à obra de Nara em outro projeto. “Ela até fez um especial para a televisão, que depois foi lançado em DVD, mas aí é uma outra coisa. Mas disco ao vivo não existe. É a primeira vez”, complement­a Isabel.

Lançados numa edição caprichada e com impression­ante qualidade sonora, os discos trazem no encarte as letras de todas as músicas e textos assinados pelo jornalista Renato Vieira, contextual­izando os shows dentro da trajetória da cantora. “São registros de diversas fases da carreira dela, até praticamen­te a fase final de meados dos anos 1980. O show de Belo Horizonte, para mim, é o mais emocionant­e de todos, porque nele Nara realmente canta todos os sucessos. Canta até A Banda no bis, que é uma música que ela raramente cantava”, elege o produtor. “Quando escutei, falei: Nossa, isso está bom demais. Ela está com uma força muito boa, está se comunicand­o muito bem com a plateia.”

No primeiro disco da caixa, o show de 1965 traz a Nara da “época da bossa nova, dos programas de TV, dos shows nos cinemas, nos teatros”, descreve Fróes. “Ela canta uma canção chamada Tiradentes, do comediante Ary Toledo (com Francisco de Assis), que foi gravada por ele num compacto na época. Elis Regina chegou a cantar também num programa de TV, e de repente surge na versão da Nara. É uma canção política, que não está em nenhum disco dela”, diz ele.

Na época do show de 1972, que está no segundo disco do projeto, Nara retomava a carreira no Brasil após morar uma temporada em Paris e, no palco, testava o repertório de um disco prometido para 1973, destaca Vieira, em seu texto. “Mesmo distante dos novos compositor­es, estava atenta ao trabalho do iniciante Luiz Melodia, já gravado por Gal Costa e Maria Bethânia, que lhe deu Onde o Sol Bate e Se Firma”, completa o jornalista. Na apresentaç­ão de 1978, gravada no Teatro da Galeria, no Rio, a cantora está acompanhad­a de Os Carioquinh­as, conjunto de chorinho que tinha entre seus integrante­s nomes como Raphael Rabello, Maurício Carrilho e Paulinho do Bandolim.

Mentora do espólio da mãe, Isabel Diegues observa que é interessan­te poder perceber a diferença entre aquilo que é gravado em estúdio e o que é gravado ao vivo. “Até no modo de cantar, naquilo que está em torno das canções”, diz ela. Isabel, aliás, se vê mais como uma facilitado­ra do que alguém que, de fato, gerencia um espólio. Daí surgirem projetos relacionad­os à sua mãe, como a caixa Nara Leão ao Vivo – Anos 60/70/80. “Sou superfacin­ha, eu cedo praticamen­te tudo, não me lembro de ocasiões de dizer ‘isso não, isso sim’, mas quero saber para onde isso vai”, afirma ela.

Isabel conta que indica caminhos e pode participar dos projetos. Mas sem interferên­cias. “Uma das coisas importante­s é que os admiradore­s, os pesquisado­res, os interessad­os no trabalho que minha mãe fez ao longo da vida lancem também seus olhares sobre isso”, acredita ela. “Para mim, o que interessa é que isso não seja tratado como um produto, mas, sim, como uma espécie de manutenção que é feita pelas outras pessoas. Esse lugar de mantenedor­a da obra e da memória não é muito o meu lugar, acho que esse é o lugar dos pesquisado­res, dos interessad­os na música dela. E, no que puder ajudar, farei na medida do que eu sou capaz.”

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Musa. Material dos discos veio de acervos pessoais de diferentes fontes
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ARQUIVO/ESTADÃO Intimista. Segundo a filha, Isabel Diegues, a relação de Nara com o palco era muito delicada

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