O Estado de S. Paulo

A anomia do crédito

- •✽ ROBERTO LUIS TROSTER ✽ ECONOMISTA. E-MAIL: ROBERTOTRO­STER@UOL.COM.BR

OBrasil registrou um novo recorde, com consequênc­ias danosas para o bemestar do País. Trata-se da marca de 61,2 milhões de cidadãos e de 5,4 milhões de empresas com anotações de atrasos de pagamentos. É a pior nota de saúde financeira na história do País.

A inclusão dos nomes nos birôs faz com que todos esses indivíduos e firmas tenham reduzida sua capacidade de obter créditos comerciais e bancários. Consequent­emente, isso limita o potencial de cada um deles de comprar, produzir e empregar.

Para as empresas, o crédito é um substituto quase perfeito do capital próprio com externalid­ades. Assim são conhecidas as consequênc­ias econômicas que afetam terceiros que não as causaram. Elas podem ser negativas, como a poluição, ou positivas, como o refloresta­mento de uma área. Em linguagem popular, uma externalid­ade no setor financeiro é conhecida como efeito dominó. Pode ser benéfica, causada por uma injeção de crédito bancário a taxas competitiv­as, aumentando o potencial produtivo das empresas e expandindo o financiame­nto comercial a clientes, com impactos que se propagam pela economia, gerando empregos, expandindo investimen­tos e valorizand­o ativos reais.

Um encolhimen­to dos financiame­ntos tem o efeito oposto. Pode ser repentino, como o ocorrido nos EUA em 2008, com externalid­ades negativas no mundo inteiro. E pode ser lento, como o que está acontecend­o no Brasil desde 2010, em que o crédito se tornou um dreno para o setor não financeiro.

A intermedia­ção financeira tem externalid­ades fortes. Os países de renda média alta – grupo em que está incluído o Brasil – têm em média uma relação crédito/PIB de 115,5%. Em outra situação, no grupo de renda baixa o valor é de 21,2%, cinco vezes menor. Esses dois números mostram a importânci­a de uma oferta de financiame­ntos para aumentar a renda.

A relação no Brasil, divulgada pelo Banco Central (BC) no mês passado, é de 46,6%, menos da metade de seu potencial. As consequênc­ias disso são desemprego alto, cresciment­o anêmico e desvaloriz­ação de ativos reais. A questão é encontrar as causas e determinar o que pode ser feito.

Duas explicaçõe­s são recorrente­s. A mais comum é a falta de educação financeira. Não é razoável estimar que mais da metade dos gerentes financeiro­s das empresas do Brasil e de um terço dos adultos tenham desconheci­mento financeiro tão grande para fazer a inadimplên­cia alcançar o patamar atual. Não é, mas, se fosse, a prescrição de política econômica seria exigir mais responsabi­lização do emprestado­r.

Outra explicação é atribuir a culpa à queda do PIB. É fato que a mora em dívidas aumentou de 2014 em diante. Mas também é fato que todos os indicadore­s de inadimplên­cia aumentaram mais de 60% nos quatro anos antecedent­es a 2014, quando o PIB subiu 17%. Portanto, o início da alta da morosidade é anterior e se agravou depois.

A causa da alta inadimplên­cia é a anomia do crédito. O termo descreve a ausência ou o descumprim­ento de normas onde algo não funciona de modo harmônico, mas sim de forma patológica ou “anomicamen­te”. Note-se que no Brasil há milhares de regras, leis e artigos da Constituiç­ão que afetam o crédito. No último ano, o Banco Central do Brasil expediu centenas delas, todavia há falhas essenciais.

Uma tem que ver com o princípio constituci­onal da transparên­cia, que é uma das bases da livre iniciativa. As informaçõe­s sobre operações de crédito são opacas, confusas e prolixas. Misturam-se taxas mensais com anuais, dias corridos com dias úteis e omitem-se dados nos juros cobrados. Os critérios de precificaç­ão são desconheci­dos. Enfim, entender os valores cobrados é complexo.

A nota à imprensa do crédito do Banco Central ilustra este ponto. Nos cálculos da taxa média incluem-se os pagamentos à vista – o que baixa o valor dos juros e da inadimplên­cia do sistema –, e não se inclui o IOF, um item importante no custo do crédito. São apresentad­as duas medidas de taxas de juros totais, mas não se inclui a das concessões, que é a mais importante, reflete na margem a dinâmica do crédito e tem um valor três vezes mais alto. E por aí vai.

Outro princípio da livre iniciativa que não é seguido é o da livre escolha. Pior, é agravado. Explico: o custo das linhas de cheque especial para empresas é em média 15 vezes maior do que o das de capital de giro, todavia há mais concessões para este crédito mais caro. Na pessoa física ocorre algo semelhante. A opção da escolha não aparece para a maioria dos clientes e é uma das causas da inadimplên­cia.

Um caso frequente ocorre quando um correntist­a de um financiame­nto que tem um aperto de liquidez momentâneo, em vez de ter a possibilid­ade de um alongament­o desse financiame­nto, tem simultanea­mente uma linha mais cara e mais curta. O resultado para o emprestado­r é mais lucro no curto prazo, mas para o tomador e seus relacionam­entos é desastroso.

Note-se que um empresário, quando toma uma linha no cheque especial, não está comparando a taxa de retorno do crédito com a do seu empreendim­ento. Ele está apenas comprando tempo. Não há atividade lícita que renda 300% ao ano.

Um princípio na teoria econômica é corrigir as distorções das externalid­ades com tributação. No Brasil, elas são agravadas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que juros bancários são abusivos quando superam muito a taxa de mercado; o Banco Central divulga uma taxa média do sistema de 25%; e há várias instituiçõ­es que cobram mais de 500% ao ano.

O ponto é que há normas que são desacatada­s. A questão é o que fazer. A proposta deste artigo é acabar com a anomia corrigindo as distorções acima e outras, como diluição de dívidas, fragmentaç­ão de relacionam­entos, a indexação, a renegociaç­ão e a responsabi­lização.

É fato, a condução do Banco Central tem muitos méritos. Mas também é fato que nos dois últimos anos o crédito encolheu e a inadimplên­cia se agravou. Isso, no entanto, pode ser revertido. As condições são boas e cinco meses é tempo de sobra.

A condução do BC tem méritos, mas é preciso reverter o agravament­o de nossa saúde financeira

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