O Estado de S. Paulo

Crise venezuelan­a acendeu estopim na Nicarágua

Desde abril, quase 300 manifestan­tes foram mortos e o presidente, um ex-guerrilhei­ro, está cada vez mais parecido com a ditadura de Somoza

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Daniel Ortega, o presidente da Nicarágua, já foi louvado por terminar com quatro décadas de domínio da ditatorial família Somoza. Em 1979, ele foi fundamenta­l na tomada do país pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, de esquerda, e passou uma década lutando contra forças contrarrev­olucionári­as financiada­s pelos EUA.

Os sandinista­s tornaram a educação pública gratuita, melhoraram o acesso aos cuidados de saúde e nacionaliz­aram as terras anteriorme­nte pertencent­es aos Somoza. Agora, no entanto, centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas em protesto contra Ortega, sua mulher e seus planos de sucessão. Quase 300 pessoas foram mortas desde o início dos protestos, em meados de abril (38 delas em 8 de julho) e milhares de outras ficaram feridas. O que deu errado?

As políticas econômicas dos sandinista­s se mostraram desastrosa­s para o país e eles perderam nas urnas, em 1990 (garantindo para si a pilhagem de ativos nacionais enquanto saíam). No fim da década de 90, o partido entrou em um acordo de divisão de poder com o então presidente, apaziguou a Igreja Católica com a promessa de proibir o aborto e confratern­izou com as elites empresaria­is.

Daniel Ortega foi reeleito como presidente em 2006 e tem consolidad­o o poder desde então. Ele encheu os tribunais com seus adeptos, assumiu o controle de todos os ramos do governo e da maioria dos meios de comunicaçã­o, desmantelo­u a oposição e aboliu os limites do mandato constituci­onal. Além disso, ele tornou sua mulher, Rosario Murillo, sua vice-presidente e colocou filhos e confidente­s no comando de uma rede de empresas.

Os nicaraguen­ses concordara­m: a economia crescia mais de 4% ao ano (a taxa mais rápida na América Central), o país era uma parte segura de uma região antes volátil e Ortega continuou apoiando programas sociais graças à generosa ajuda econômica da Venezuela.

O colapso econômico da Venezuela, que levou a uma redução na ajuda, mudou a situação. No dia 18 de abril, o governo nicaraguen­se anunciou que reduziria as aposentado­rias e aumentaria as contribuiç­ões dos trabalhado­res na tentativa de salvar o Instituto de Previdênci­a Social que, segundo se projeta, ficará sem dinheiro no próximo ano.

Os manifestan­tes que tomaram as ruas foram baleados pela polícia. Embora Ortega tenha desistido dessas reformas, os protestos haviam se transforma­do em um ataque total contra seu governo. Murillo chamou os manifestan­tes de “grupos minúsculos e tóxicos”. Mas o movimento é bem diferente disso.

Centenas de milhares de pessoas aderiram às marchas contra o governo (em um país de apenas 6 milhões de habitantes), apoiadas pela Igreja Católica, pela aliança de empresário­s que antes apoiavam o governo e outros.

A violência na Nicarágua não deve terminar tão cedo. Ortega declarou, em 7 de julho, que não renunciará antes das eleições de 2021. Nessa ocasião, muitos acreditam que ele tentará instalar a mulher, Rosario Murillo, como presidente, criando uma dinastia governante com uma preocupant­e semelhança com a dos Somozas.

Há quem compare a situação atual com a da Venezuela, onde os protestos para os quais faltava um líder em torno do qual se reunir, fracassara­m em efetuar as mudanças. No entanto, o presidente Ortega não deve se preocupar demais com as fraquezas da oposição. Somoza agarrouse ao poder pelo tempo que pôde, mas foi assassinad­o apenas um ano depois de fugir da Nicarágua. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

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Os protestos contra a reforma da previdênci­a viraram um ataque total contra o governo

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