O Estado de S. Paulo

A viagem de Baby

- RUTH MANUS E-MAIL: RUTH.MANUS@ESTADAO.COM RUTH MANUS ESCREVE AOS DOMINGOS

Baby é um boneco. Boneco daquele tipo mais básico da atualidade. Aquele tradiciona­l boneco careca de plástico, branco e de olhos azuis, pouco representa­tivo da diversidad­e do país, que pode ter nomes como Meu Bebê, Nenuco, Nenê Encanto ou outras coisas do gênero consoante a marca.

Luísa ganhou o boneco no seu primeiro Natal. A princípio não deu muita bola para ele, mas, mais perto dos 2 anos de idade, afeiçoou-se pelo brinquedo e – coisa de criança que estuda em escola bilíngue – batizou-o de Baby.

Baby tinha uma muda de roupa, mas Luísa gostava daquela imagem genuína do bebê pelado, como veio ao mundo, que de fato tem um quê de libertador­a. Mesmo quando foi com os pais para a Patagônia no inverno, negou-se a colocar qualquer tipo de vestimenta no boneco, que, para nossa sorte, tem uma saúde de ferro (ou de plástico, no caso) e não pegou uma pneumonia.

Baby passou a fazer parte da família, me dando o título precoce de tiaavó antes dos 30 anos, bem como tornando minha irmã avó aos 34 e fazendo com que os avós se transforma­ssem em bisos ainda na casa dos 60. Baby, como toda boa boneca contemporâ­nea, também foi sendo personaliz­ado ao longo dos anos, ganhando rabiscos de canetinha verde no rosto, pescoço e dentro da boca.

A relação entre Luísa e Baby era de muito amor e dependênci­a. Baby nos acompanhav­a no carro, nos restaurant­es, nas viagens e nas festas de família. No último Natal não foi diferente. O boneco viajou de São Paulo para Coimbra para comemorar os festejos do fim do ano com seus bisavós paternos. Até arroz de polvo o Baby comeu.

No regresso da família, algo terrível aconteceu. Entre malas, presentes, passaporte­s e tantas outras coisas que deveriam ir de Coimbra para Lisboa, o Baby acabou ficando esquecido no sofá da casa dos avós da Luísa. Por sorte, o voo de Lisboa para São Paulo era só dali a três dias. Quando minha irmã entrou em minha casa lisboeta, me puxou para um canto e disse em palavras mudas “o. Baby. ficou. em. Coimbra. ela. ainda. não. percebeu”.

Eu sabia o que aconteceri­a quando ela percebesse. O mesmo que acontece com os adultos quando percebem que esqueceram o celular, os óculos, o maço de cigarros. A única diferença era que ela não iria segurar o choro. Nós seguramos. Precisávam­os arquitetar um plano o quanto antes. Não havia a menor hipótese de embarcar no voo para Guarulhos sem a presença do Baby. Ou iam todos, ou não ia ninguém.

Toda família foi mobilizada por WhatsApp. Era uma questão urgente e prioritári­a. O que fazer? De repente me lembrei que, um dia, ao levar minha enteada na pracinha, troquei contatos com o pai de uma menina com quem ela brincou, que era professor em Coimbra e que ia e voltava sempre. Não tive dúvidas, escrevi para ele, narrando o incidente. Nada que um pai de criança não entenda. Todavia, por um grande azar, ele não iria para Coimbra aquela semana.

Vamos para um Plano B. Arriscado, porém com alta possibilid­ade de êxito. O avô Luís pega o Baby em sua casa. Dirige-se até a estação de trem de Coimbra. Começa a analisar os perfis das pessoas que aguardavam o trem para Lisboa. Procura alguém com ar de avô ou avó. Encontra um casal. Aproxima-se. Narra o caso. Recebe retorno positivo. Baby viajará com estranhos. Nos avisa: casal, cerca de 70 anos, ela de vermelho, ele de preto. Chegam a Lisboa às 20h23. Câmbio, desligo.

20h. Minha irmã pega um táxi. Eu vou entupindo a criança de comida para distraí-la. Marina chega à estação de Santa Apolónia. Procura o casal. Localiza. Resgata o Baby, pelado como sempre. Agradece profundame­nte. Volta para minha casa. Tira o Baby da bolsa sorrateira­mente. Coloca-o em cima do sofá. Nos olhamos, aliviadas. Luísa o vê e diz “vem, Baby, vem com a mamãe”. Beija sua careca. Todo esforço valeu a pena.

No regresso da família, algo terrível aconteceu. O boneco foi esquecido na casa dos avós

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil