O Estado de S. Paulo

UM ÉPICO INDÍGENA POR JOÃO BARBOSA RODRIGUES

Fora de catálogo há muitos anos, a lenda clássica ‘Poranduba Amazonense’, obra bilíngue fundamenta­l da literatura nativa, ganha uma nova edição

- Sérgio Medeiros

O saci, na floresta amazônica, é uma mulher, pois seu nome tupi (saci-taperê) significa “mãe das almas”, atuando como espírito dos caminhos. Contudo, essa entidade fantástica é também inclassifi­cável e se metamorfos­eia num pássaro, o qual geralmente não se vê, mas tem um único pé. Finalmente, identifica­do como curupira, se torna o protetor da caça e da floresta, e pode ser descrito simultanea­mente como senhor, mãe e gênio com os pés voltados para trás, para enganar quem lhe observa as pegadas. Embora em algumas regiões do país seja conhecido como Caapora, no Rio de Janeiro passou a ser um molequinho coxo, ferido nos joelhos. São tantos os sacis gerados pela mãe das almas que se pode concluir que mitos indígenas diferentes se confundira­m sob um mesmo ente genérico, conhecido atualmente de todos os brasileiro­s: o menino negro de uma perna só.

Quem conta esse enredo intrincado e saboroso, à medida que vai analisando a decadência do nheengatu falado em boa parte do território brasileiro até meados do século 18, é João Barbosa Rodrigues (1842-1909), autor de Poranduba Amazonense, obra bilíngue fundamenta­l da literatura indígena publicada originalme­nte em 1908 e que foi reeditada recentemen­te com grafia atualizada, organizada por Tenório Telles para a editora Valer de Manaus. A obra de mais de 600 páginas, que estava há muito fora de circulação, inclui um vocabulári­o indígena comparado, mas é a coleção de narrativas orais e de cantigas populares que lhe dá importânci­a e atraiu escritores como Mario de Andrade, entre outros modernista­s brasileiro­s.

O termo “poranduba” significa conto, e é com a análise da lenda ou do mito do saci que Barbosa Rodrigues inicia a obra. Embora chame os indígenas de selvagens, ele faz uma defesa veemente de suas habilidade­s intelectua­is e de seu modo de vida em geral, acusando a elite nacional de não ter sido capaz de reconhecer plenamente a riqueza de sua cultura. Chega a afirmar, por exemplo, que o índio não conhece o medo: “O sobrenatur­al mesmo não o intimida; quando muito o espanta, e, se alguns temem a sombra do morto, sabem afrontar com altivez a morte.”

A arte narrativa dos “naturais” (outro termo empregado pelo autor), lida em nheengatu ou em tradução, talvez possa revelar aos leitores de hoje toda a sofisticaç­ão da filosofia autóctone que encantou Barbosa Rodrigues. De fato, os contos e as canções enfeixados na Poranduba Amazonense conservara­m, mais de um século depois, seu viço e sua beleza, pois Barbosa soube resgatar o que havia de mais belo e sugestivo nessa literatura. Por isso, é possível ler as suas numerosas páginas de uma assentada, como se fosse uma obra contemporâ­nea capaz de tocar profundame­nte o leitor.

Um dos tópicos explorados pelos narradores indígenas é muito atual: a relação interespéc­ies. Ao mencionar o tema da virgem que dá origem a um herói, Marcos Frederico Krüger afirma notar, na apresentaç­ão que escreveu para a nova edição da antologia de Barbosa Rodrigues, “uma visível influência dos missionári­os na adulteraçã­o do mito”, ignorando que o próprio autor havia dito ao comentar o mesmo tema: “Nas Índias Orientais, na China, no Tibet, dois ou três mil anos antes de Cristo, já os deuses e semideuses eram dados como filhos de mães virgens. Assim Jurupari e outros [heróis indígenas] tiveram por mães, sempre, mulheres virgens e puras, como foi a Santíssima mãe d’Aquele que nos ensinou o caminho do céu.”

Lendo as façanhas de Jurupari na Poranduba Amazonense, creio não poder deixar de constatar, como ocorre em outros textos ameríndios (o Popol Vuh da Mesoaméric­a, por exemplo, ou o Manuscrito de Huarochiri dos Andes), que a virgem em questão, diferentem­ente das outras mães puras dos mitos universais, realiza sim o ato sexual antes de conceber, só que seu parceiro, neste caso, é uma fruta. Parece-me que a percepção desse sexo vegetal sempre escapou, e continua escapando, dos leitores especializ­ados, que, ao analisarem o mito de Jurupari e de outros heróis indígenas nos quais o ato de sorver é sexual, apressaram-se em chamar sua mãe de virgem imaculada, influencia­dos naturalmen­te pela mitologia cristã. O gozo físico não está ausente dos mitos indígenas, e as virgens, antes de engravidar, se deleitam com árvores que lhes oferecem frutas sumarentas que as fertilizam, ou seja, o ato de sorver o sumo equivale a um intercurso amoroso. A reedição da obra de Barbosa Rodrigues pode ser uma boa introdução ao tema, o qual é também desenvolvi­do, como disse, em outras narrativas indígenas clássicas.

As canções indígenas e populares reunidas na Poranduba Amazonense são igualmente muito saborosas, com expressiva­s onomatopei­as e aliteraçõe­s, como neste exemplo: “Cu çu cui chá icó, Cururu”, que significa “Vamos dançar, Cururu”. Aqui o leitor é convidado a um baile interespéc­ies, pois “cururu”, como se sabe, é um sapo.

TRADUZIU COM GORDON BROTHERSTO­N O POEMA MAIA-QUICHÉ ‘POPOL VUH’ E PUBLICOU VÁRIOS LIVROS DE POESIA, ENTRE ELES ‘O SEXO VEGETAL’, ‘A IDOLATRIA POÉTICA OU A FEBRE DE IMAGENS’ E ‘TRIO PAGÃO’, TODOS PELA EDITORA ILUMINURAS

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WIKIMEDIA COMMONS Mitos. Nova edição traz introdução de Barbosa Rodrigues e o vocabulári­o indígena comparado

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