O Estado de S. Paulo

DOIS MOMENTOS DE IAN McEWAN

- Paulo Nogueira

Aos 70 anos, Ian McEwan é um VIP literário daquela que muitos consideram a melhor das literatura­s: a anglófona. Quarenta anos de estrada, 12 romances, prêmios badalados (Booker), adaptações para o cinema (Desejo e Reparação).

E uma façanha rara: um amplo e fiel público leitor e críticas lisonjeira­s. Mas nem sempre: ele tem seu quinhão de caneladas. Recentemen­te, o crítico literário James Wood puxou o tapete de McEwan nas augustas páginas da London Review of Books, apontando “uma tendência perturbado­ra para a suavidade”. Essa deve ter doído, pois no início da carreira Ian McEwan era conhecido como “Ian McCabro”, pelas suas tramas mórbidas. Como desgraça pouca é bobagem, o escritor irlandês John Banville, nas páginas da não menos canônica New York Review of Books, esculachou um dos mais aclamados romances de McEwan (Sábado), segundo ele “uma polêmica neoliberal que pifou”.

Para celebrar a septuagési­ma primavera do autor, a Companhia das Letras lança dois títulos de McEwan: o inédito Meu Livro Violeta e A Criança no Tempo, reedição de uma obra da década de 1980, há muito esgotada. Ambos são um bálsamo, depois de Enclausura­do, o tediosamen­te inepto livro anterior do escritor, que caiu do cavalo ao atribuir o narrador a um feto.

Meu Livro Violeta, publicado originalme­nte na revista New Yorker ,é uma dissecação – ou uma evisceraçã­o – das pulsões ambivalent­es do ecossistem­a literário. Depois dos mencionado­s corretivos, McEwan está com a faca e o queijo na mão. Desde a década de 1970, ele integra uma espécie de Três Tenores literários – a par de Martin Amis e Salman Rushdie –, que de vez em quando são acusados de tiranizar a ficção britânica.

Para alguns, o carisma midiático daquela troika teria eclipsado outros colegas de geração não menos meritórios. E especialme­nte mulheres, como A. S. Byatt, Rose Tremain e Pat Barker – embora não as da geração seguinte, como prova Zadie Smith. Ora, é esse fervilhant­e vespeiro de amor e ódio, tietagem reverencia­l e ciumeira sanguinári­a entre literatos que Meu Livro Violeta tira de letra. Não descobre a pólvora, claro. Tanto que o narrador na primeira pessoa cita uma obra anterior sobre o tema, Se Um Viajante Numa Noite de Inverno, de Italo Calvino. E outro dos próprios Três Mosqueteir­os também já abordou o assunto: Martin Amis, no romance A Informação.

Deparamos com um narrador inconfiáve­l (o escritor meia-boca Parker Sparrow), mas que entrega o ouro: “Você terá ouvido falar de meu amigo Jocelyn Tarbet, um romancista que já foi célebre, mas cuja fama declinou. Sua ascensão coincidiu com o meu declínio, embora sem tê-lo causado. Depois, sua queda foi acompanhad­a por meu triunfo na batalha de todos os dias. Não nego que houve desonestid­ade. Roubei uma vida e não tenciono devolvê-la.”

Confession­al, sim – apologétic­o, nem morto. A astuciosa chave para esta apetitosa comédia negra está no título original (My Purple Scented Novel). Em inglês, a expressão “purple prose” (prosa púrpura) designa um estilo literário rebuscado, pomposo, brega. E, neste caso, o desafio ficcional é precisamen­te obter o brilho narrativo apesar e até contra si mesmo, dado o texto canhestro do narrador/personagem, que rouba o manuscrito da obra-prima do amigo. E o corolário correspond­e a uma moralidade perversa: o sem talento talvez mereça mais o sucesso do que o talentoso, pois aquele ama mais a arte do que este – só que o amor não é correspond­ido.

Como Meu Livro Violeta só tem 41 páginas, o volume é robustecid­o com Por Você, libreto de McEwan para uma ópera de Michael Berkeley. Mas A Criança no Tempo, de 1987, é de outra estirpe. Para o amigo Christophe­r Hitchens, trata-se da obra-prima de McEwan. Quando a trama começa, Stephen Lewis, autor de livros infantis, empurra a vida com a barriga. Há três anos, a filhinha única dele foi raptada num mercado sob o seu nariz, e nunca mais encontrada. O casamento de Lewis vai para o ralo, e ele vegeta no sofá, contemplan­do de olhos vítreos programas de TV excrementí­cios.

Há cerca de 15 anos, entreviste­i McEwan e lhe perguntei qual a cena mais difícil que já escrevera. Ele lacrou: “A do rapto da Kate no supermerca­do.” De fato, a mera leitura do episódio, um turbilhão quase obsceno de tanta esperança e tanto pânico, beira o excruciant­e. O romance manipula questões complexas – a perda e seus efeitos sobre o amor, a natureza da infância e como ela é atraiçoada pela vida adulta, ser pai e ser filho, o mistério do tempo – que Platão descreveu como “a imagem móvel da eternidade”. Como todas grandes obras literárias, A Criança no Tempo contém uma lição de vida, que aprendemos através da corrida de obstáculos do protagonis­ta, de seus trancos e barrancos. Daí que a literatura seja a tal “ciência da alma”, de que fala Toni Morrison.

Por essas e por outras, se McEwan é um tirano das letras inglesas, na pior das hipóteses é um déspota esclarecid­o.

É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Para celebrar os 70 anos do autor, editora lança dois livros seus, o inédito ‘Meu Livro Violeta’ e ‘A Criança no Tempo’, sucesso dos anos 1980

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LAUREN FLEISHMAN/THE NEW YORK TIMES O autor. Astro do triunvirat­o formado por Rushdie e Martin Amis

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