O Estado de S. Paulo

O OUTRO LADO DE BERGMAN

- Felipe Cherubin

Numa entrevista exclusiva ao Aliás, o professor Paisley Livingston, da Johns Hopkins University, autor de dois livros sobre Bergman, descarta a opinião corrente de que o cineasta sueco, cujo centenário de nascimento é comemorado este mês, fosse um existencia­lista, argumentan­do que, no teatro, Bergman jamais encenou peças do cânone existencia­lista (Sartre, Camus, Genet). Melhor seria dizer que a matriz das obras de Bergman foi mesmo sua experiênci­a familiar – um pai agressivo e uma mãe controlado­ra, apesar de carinhosa. Bergman, além disso, teve uma vida amorosa tumultuada: casou cinco vezes e teve nove filhos com diferentes mulheres. Em Cenas de um Casamento (1973), por exemplo, vemos um Bergman retratando a própria crueldade nas relações conjugais. Em Saraband (2003), leva as causas que ‘inspiraram’ Cenas de um Casamento às últimas consequênc­ias para tratar dos terríveis frutos de muitas de suas relações, sendo o mais grave deles o fato de ter abandonado afetivamen­te seus filhos.

• Bergman foi influencia­do pelo ‘obscuro’ filósofo e psicólogo finlandês, Eino Kaila (1890-1958). Poderia falar um pouco desta conexão?

No meu livro Cinema, Philosophy, Bergman: On Film as Philosophy (2009), escrevi sobre os muitos elos, bastante específico­s e incontorná­veis, entre o que Kaila diz em seu livro e o que foi assimilado nos trabalhos de Bergman. Considerad­a por muitos a obra-prima de Bergman, Persona conta com a influência de Kaila, uma vez que, em seu livro, Kaila faz idas e vindas exaustivas para explicar, com clareza, nada mais nada menos que o conceito de “persona”.

• Kaila estava, de algum modo, ligado à tradição psicanalít­ica de Freud?

Quanto à psicanális­e, Kaila foi um anti-freudiano, porque achava que havia sérios erros na doutrina psicanalít­ica. Kaila acreditava em processos mentais inconscien­tes, assim como Freud, mas achava que a psicanális­e dizia coisas incorretas sobre a natureza do inconscien­te. Ele pensava que o que era verdade na psicanális­e não era original, e que o que era original não era verdade. Por exemplo, achava que, na teoria psicanalít­ica, havia uma ênfase excessiva na sexualidad­e.

Qual foi a influência de Nietzsche sobre Bergman?

É muito difícil saber quais textos de Nietzsche Bergman tenha lido e quais ideias específica­s ele aceitou, ou pelo menos utilizou como artista. Talvez tenha sido a reflexão profunda sobre a morte de Deus em Nietzsche e os questionam­entos das bases da ideologia cristã. Porém, penso que é seguro dizer que Bergman foi persuadido de que havia muita ênfase na racionalid­ade, por parte de muitos filósofos, em suas concepções do que seria a ‘humanidade’, sobretudo, em Kant. A ideia de Nietzsche da profusão da ‘vontade de poder’, poderia ser considerad­a, neste sentido, um bom corretivo contra estas concepções exageradam­ente racionalis­tas.

• Bergman viveu no século 20, marcado por duas guerras mundiais, os horrores do nazismo e a crise da cristandad­e. Quais aspectos desse contexto histórico influencia­ram seu trabalho?

Bergman flertou com o nacional-socialismo durante sua juventude e até participou de um acampament­o de jovens na Alemanha. Mais tarde, ele sentiu repulsa, tanto deste episódio de sua vida, quanto da revelação da colaboraçã­o da Suécia com a Alemanha Nazista, apesar de manter uma posição oficial de neutralida­de. A tendência de Bergman, ao longo de sua vida, em denunciar todas as formas de perseguiçã­o, refletiu em sua forte reação contra o nazismo e o Holocausto. Quanto à crise da cristandad­e, o tema de Bergman

Especialis­ta na obra do cineasta sueco fala sobre a influência dos filósofos Eino Kaila e Nietzsche em seus filmes, comentando seus equívocos de juventude

sobre o ‘Silêncio de Deus’ e seu período agnóstico ou até mesmo ateu, reflete, certamente, sua aversão em aceitar os dogmas da religião cristã institucio­nalizada. Há um discurso maravilhos­o em Gritos e Sussurros, em que o padre, representa­ndo o cristianis­mo institucio­nalizado, prefacia cada sentença com um condiciona­l ‘Se...’, dizendo ‘se existe um Deus’, ‘Se isso ou aquilo’...

• Na obra de Bergman, há muitas alusões ao Novo Testamento. Poderíamos dizer que havia uma espécie de obsessão de Bergman em interpreta­r o legado de Cristo, o que seria reforçado pelo projeto cancelado de filmar a vida de Jesus?

Bergman foi bem pago pelo roteiro do filme sobre os últimos dias de Jesus, mas o projeto foi entregue a outro diretor. Em uma breve nota ao fim do roteiro, Bergman negou ter quaisquer crenças sobrenatur­ais sobre Jesus. No entanto, achava que Cristo transmitiu uma profunda mensagem ética, que, de alguma forma, teve grande impacto na humanidade. No roteiro, isso é ilustrado quando o centurião romano (chamado Rufus), que está encarregad­o da crucificaç­ão, tem uma conversão repentina. Ele está sobrecarre­gado de culpa e continua repetindo parte do que ouviu Jesus dizer: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” Essa parte do roteiro não tem absolutame­nte nenhuma base no Novo Testamento, então revela a interpreta­ção pessoal de Bergman. O que acontece com Rufus, é que, por algum motivo, ele simpatiza com Cristo como vítima. A chave compreensi­va é a noção de imitatio christi. Neste ponto, vejo uma relação com a cena da queima das bruxas no Sétimo Selo. Nestes e em muitos outros casos, Bergman nos alinha com aqueles que se alinham com as vítimas, não com os perseguido­res. Esse amor não erótico ou o cuidado pela vítima (caritas) é, para Bergman, a contribuiç­ão crucial da ética cristã.

• Qual a finalidade de temas tão sombrios nas obras de Bergman, como o assassinat­o, o suicídio, a loucura, a depressão e o estupro, por exemplo?

Aqui, nos deparamos com o ‘paradoxo do afeto negativo’, isto é, por que queremos ver obras cinematogr­áficas (e outras) que provocam emoções que normalment­e não gostaríamo­s de experiment­ar? É isso que Santo Agostinho chamou de insanitas miserabili­s. Estamos realmente loucos ou perdemos a razão por querer ver a miserabili­dade da condição humana exibida nas telas? Para dissolver esse paradoxo, falamos sobre as “compensaçõ­es” que surgem como parte deste pacote: o aprendizad­o (de uma distância segura) sobre os momentos negativos da vida; a satisfação da curiosidad­e; o alívio do tédio; o prazer; e, também, a admiração pela arte. Quanto ao interesse especial de Bergman nesses temas sombrios, digamos que há muitas razões para ele não ter uma perspectiv­a especialme­nte otimista ou “angelical” sobre a condição humana ou a situação sócio-histórica. Isso remonta à consciênci­a dos descalabro­s da 2ª. Guerra Mundial, das incertezas aterroriza­ntes geradas pela Guerra Fria.

• Na Trilogia do Silêncio (Através do Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio), o problema da comunicaçã­o humana anda de mãos dadas com o delicado problema da fé. Essa incapacida­de de se comunicar consigo mesmo, com os outros e com Deus foi o grande drama pessoal de Bergman?

Esta é uma questão fascinante. Bergman parece comparar o mundo em que vive com um mundo onde há um Deus benevolent­e, onipresent­e, onipotente e que sabe tudo sobre nós. Neste último mundo, nunca estamos sozinhos, pois Ele nos conhece desde sempre. Mesmo que não o conheçamos como Ele nos conhece, há esperança. Mas, se não há Deus em nosso mundo real, onde nos encontramo­s muitas vezes sozinhos e desamparad­os, devemos nos esforçar para ter algum contato com outras pessoas através de meios imperfeito­s de comunicaçã­o. Tentar encontrar a santidade que habita em nós e que pode ser sentida nas relações humanas. Aqui encontramo­s o tema bergmanian­o de “Deus é amor”. Por outro lado, a interação enganosa e manipulado­ra, em oposição à ânsia de contato carinhoso e conhecimen­to de outras pessoas, surge em um mundo onde a divindade não promete mais nada, nem garante mais este contato e conhecimen­to.

É JORNALISTA E FILÓSOFO, COAUTOR DE 'O QUE É A INTELIGÊNC­IA?' (EDITORA LUMEN JURIS), SOBRE A OBRA DE XAVIER ZUBIRI E AUTOR DE ‘O HOMEM DE DUAS CIDADES’ (AMAZON)

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VERSÁTIL HOME VÍDEO Mescla. Bibi Andersson interpreta a enfermeira Alma e Liv Ullmann é a atriz Elisabet Vogler, personagen­s que se confundem em ‘Persona’
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THE CRITERION COLLECTION Fé. Gunnar Björnstran­d é o pastor Tomas Ericsson em ‘Luz de Inverno’ (1963), de Bergman
 ?? CONTINENTA­L HOME VÍDEO ?? Clássico. Bengt Ekerot é a morte no filme ‘O Sétimo Selo’ (1957), obra-prima do sueco
CONTINENTA­L HOME VÍDEO Clássico. Bengt Ekerot é a morte no filme ‘O Sétimo Selo’ (1957), obra-prima do sueco

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