IDENTIDADE FLUIDA
Ninguém sabe bem o que fazer com o trabalho de Phia Ménard. Isso é teatro? É dança? O Festival de Avignon lista sua mais recente criação, Saison Sèche (Temporada Seca), que terá sua estreia lá terçafeira, em uma outra categoria, vagamente chamada “Indisciplina”. “Como eles não sabiam onde me colocar, fiquei como ‘indisciplina’ disse ela em entrevista recente, parecendo exaustivamente divertida. Ménard, de 47 anos, muitas vezes deixa perplexos os programadores. Suas produções teatrais não apresentam quase nenhum texto e operam em escala arquitetônica, entre a coreografia e a instalação artística. Suas lentas trocas de cenário ofuscam qualquer presença humana, deixando o público com imagens enigmáticas – um sombrio exército de figuras congeladas derretendo diante de nossos olhos ou um solitário performer lutando em um vórtice de ventos movidos a ventoinha.
Ménard é uma das poucas proeminentes artistas transgêneros na França, onde essas questões têm dificuldade para ganhar a atenção pública. Gênero é o tema dominante do Festival de Avignon deste ano, que vai até 24 de julho e é o mais importante no calendário do teatro francês. Saison Sèche,
de Ménard, é uma das várias peças do evento focados na identidade de gênero, junto com Trans (més enllà), de Didier Ruiz, e Romances Inciertos, un Nouveau Orlando, de François Chaignaud e Nino Laisné. Para Ménard, o festival vem após uma grande temporada. Em fevereiro, sua primeira apresentação de ópera, Et in Arcadia Ego, de Rameau, aconteceu na Opéra-Comique, em Paris; em 2017, ela lançou Les Os Noirs (Ossos Negros), uma criação sombria e inquietante sobre o suicídio.
Saison Sèche lida com a violência que as mulheres sofrem nas sociedades patriarcais. O elenco ficará preso em um espaço branco fechado, sob um teto que se move para cima e para baixo sem rima ou razão. “É o teto de vidro e muito mais”, disse Ménard. “É como estar permanentemente sob vigilância e ser repreendida assim que uma ação for considerada censurável.”
Pessoalmente, Ménard, que primeiro se destacou como malabarista virtuosa nos anos 1990, é atenciosa e paciente; percebe-se que seu tom uniforme e articulado foi sendo aperfeiçoado ao longo dos anos em que passou explicando a si mesma. Enquanto os Estados Unidos têm proeminentes artistas transgêneros, como Laverne Cox e Trace Lysette, a identidade transgênero está apenas começando a entrar na consciência dominante na França. Por muito tempo, disse Ménard, ela permaneceu ligada à vida noturna parisiense e a um punhado de artistas de cabaré que amadureceram na década de 1960, como Coccinelle, que morreu em 2006, e Bambi, de 82 anos, que estará em Avignon para apresentar documentário sobre sua vida.
Há sinais de mudança: um conhecido comediante, Océan, declarou-se recentemente um homem transexual, e um personagem transexual foi apresentado em março em Plus Belle la Vie, uma das novelas mais populares da França. Ainda assim, disse Ménard, as raízes latinas “machistas” da cultura francesa levaram à resistência social, e as representações tradicionais da identidade transgênero podem ser problemáticas. No ano passado, a diretora Nadir Moknèche foi criticada por escalar a atriz Fanny Ardant como transgênero em seu filme Lola Pater. Em entrevista à revista Télérama,
Moknèche criticou seus detratores, dizendo que o argumento deles implicava que “apenas um estuprador poderia atuar como um estuprador”.
Ménard cresceu na região da Bretanha, no norte da França, onde sua mãe era costureira e seu pai trabalhava nos estaleiros. Seu ambiente de classe trabalhadora nos anos 1970 e início dos anos 1980 era de esquerda e pró-sindicato, mas os papéis sexuais eram estritamente definidos. “Quando você era descoberta usando as roupas de sua mãe, era levada a um terapeuta”, disse Ménard. “Até o final dos meus 20 anos, eu pensei que era louca.”
Após o ensino médio, mudou-se para Nantes para estudar microtecnologia, especializando-se
A diretora Phia Ménard desafia convenções com um espetáculo que transita entre diferentes gêneros, peça que reflete sua vida; afinal, ela é transsexual
no trabalho de instrumentos cirúrgicos microscópicos. Ela nunca colocou seu diploma em uso, no entanto: Na mesma época, ela descobriu malabarismo e treinou com um mestre do ofício, Jérôme Thomas. “Pela primeira vez, consegui fazer algo com meu corpo do qual gostava”, disse ela.
Enquanto estar no palco dava-lhe um pouco da liberdade pela qual ansiava, um encontro casual com um coreógrafo cujo parceiro havia feito a transição falou sobre um acerto de contas pessoal. “Ele me disse: ‘Você não é louca, você é apenas trans’”, disse Ménard.
Quando iniciou sua transição hormonal, em 2008, ela criou o primeiro de seus trabalhos explorando elementos naturais, P.P.P., no qual blocos de gelo caíam aleatoriamente do teto para o palco, onde Ménard estava exposta. “Aquilo me abalou. O gelo parece um material para o qual você olha com desejo, mas que não quer tocar. É a mesma posição de uma pessoa trans: elas provocam uma espécie de desejo e, ao mesmo tempo, você tem medo de dormir com elas”, disse Ménard.
P.P.P. não foi um sucesso instantâneo, apesar dos elogios da crítica. Depois de algumas apresentações iniciais, Ménard achou impossível convencer os programadores de festivais ou locais culturais a aceitarem isso. Sem nada mais à vista após o primeiro ano, ela voltou ao Ministério da Cultura, que ajudou a financiar o desenvolvimento do trabalho: “Aqui está seu dinheiro público de volta, é um fracasso”, ela disse a eles. Mas o ministério se recusou a aceitá-lo e o P.P.P. encontrou seu público, mais tarde, em turnê que durou uma década.
Ménard nunca realiza audições. Alguns artistas entram em contato com ela por e-mail; alguns chegam até ela depois de performances. Seu treinamento varia, da dança ao teatro e às artes visuais, mas todos eles têm uma coisa em comum: “Somente mulheres me procuram”, disse Ménard.
Em Saison Sèche, haverá sete delas. Ménard não se inclui em seus trabalhos em grupo: “Todas as mulheres são cisgênero”, disse ela, usando o termo para aquelas cuja identidade de gênero corresponde ao gênero atribuído no nascimento. “Inevitavelmente, se eu estivesse no palco, sei que o público olharia para mim”, disse ela. “A verdadeira questão em torno de um corpo como o meu é saber o que se tornou e o que é. Automaticamente, haveria uma comparação.”
Em vez disso, as mulheres de Saison Sèche lentamente adquirem personas masculinas ao longo da performance – um lembrete, disse Ménard, de que o comportamento de gênero é socialmente construído. Por causa do medo, “nós continuamos construindo muros”, ela acrescentou. “O elenco mostra que eles podem ser cruzados, que é apenas um set de filmagem”. Em sua vida, Ménard diz que se sentiu uma “tradutora” tanto para homens como mulheres. “Vivi do lado dominante por 30 anos. Eu era invisível: podia andar em qualquer rua à noite e as chances de que algo acontecesse comigo eram muito pequenas. Agora é absolutamente impossível. Eu perdi o direito à invisibilidade. É um lembrete de que, de repente, não tenho mais espaço – sou apenas um inquilino.”
Independentemente disso, sua vida se tornou “mais simples” desde sua transição, ela disse, acrescentando que agora estava em paz. “Em nível hormonal, sou apenas uma adolescente”, disse Ménard com um sorriso irônico. “Talvez seja por isso que eu sou tão incontrolável.”